Debate sobre racismo atinge o Palácio de Buckingham
Entrevista de duque e duquesa de Sussex , Meghan Markle e Príncipe Harry, abre crise institucional na monarquia britânica e obriga o Reino Unido a se olhar no espelho de seu passado colonial
A casa real britânica começou a entender nesta semana tempestuosa que, quando acreditava saber todas as respostas, as perguntas tinham mudado. As acusações de racismo e indiferença diante de um problema sério de saúde mental, feitas pelo príncipe Harry e por Meghan Markle em sua já mundialmente famosa entrevista com a jornalista Oprah Winfrey, revelaram uma brecha geracional e emocional não só na sociedade do Reino Unido, mas também no seio da Casa de Windsor. Horas depois que o Palácio de Buckingham sugeriu em seu comunicado de resposta que roupa suja se lava em casa, o príncipe William, de 38 anos, entrou em cheio no debate e proclamou diante das câmeras que sua família “não é nem um pouco racista”.
As brigas internas da realeza britânica são um entretenimento nacional. Tablóides como o The Sun ou o Daily Mail continuam vendendo, apesar da crise que atinge a imprensa, mais de um milhão de exemplares diários cada um. As batalhas familiares da família Windsor, reais, imaginárias ou exageradas, são fundamentais para manter o faturamento. Cada fotografia da duquesa de Cambridge, Kate Middleton, e da duquesa de Sussex, Meghan Markle, vem acompanhada do anúncio correspondente com a cópia mais acessível que o mercado oferece do vestido, da jaqueta ou da calça que elas usam na ocasião.
Existe no establishment a inércia de pensar que os britânicos adoram sua rainha e estão mais do que satisfeitos com sua milenar monarquia. De descartar qualquer novo temporal como algo passageiro que também diminuirá. “Como assunto nos jornais e nas redes sociais, tenho a impressão de que isso vai durar pouco”, diz ao EL PAÍS Jonathan Sumption, ex-juiz da Suprema Corte e polemista inveterado, com uma inteligência reconhecida até por seus inimigos. “O Palácio de Buckingham jogou suas cartas com habilidade e conseguiu se apresentar melhor do que Meghan Markle como a vítima de todo este caso. Não acredito que a acusação de racismo vá perdurar. A rainha, o príncipe de Gales [Charles] e o duque de Cambridge [William] são extraordinariamente corretos quando tratam de questões raciais”, defende Sumption.
Aí está a chave de toda esta nova crise institucional, mas não constitucional, do Reino Unido. São inúmeras as vozes ofendidas, ou simplesmente surpreendidas, que negaram nesta semana qualquer vestígio de racismo na sociedade britânica. “Por que seria racista perguntar de que cor vai ser a pele do seu bebê?”, indagava o jornalista Anil Bhoyrul em um artigo publicado com urgência pelo semanário conservador The Spectator. Bhoyrul é indo-mauritano, de pele escura e traços asiáticos, casado com uma branca. Cada um de seus três filhos tem uma cor diferente. “O contexto é tudo. E ninguém sabe qual foi o contexto em que um membro da família real fez esse comentário sobre o filho que Harry e Meghan estavam esperando”, argumenta Bhoyrul. Os duques de Sussex contaram a Oprah Winfrey que alguém da família Windsor havia expressado a eles sua “preocupação” com o tom de pele da criança. Mais tarde, matizaram que não tinha sido nem a rainha nem seu marido, Philip de Edimburgo. Mas deixaram a bomba ativada.
O argumento de que “o contexto é tudo” serve, no entanto, para os dois lados. “Os protestos do ano passado do movimento Black Lives Matter e suas consequências lembraram ao mundo − como se fosse necessário lembrar − que a tensão racial nos Estados Unidos, na Europa e em outras partes continua latente. Em alguns aspectos, pior do que uma geração atrás”, afirma Alexander Larman, autor do livro The Crown in Crisis: Countdown to the Abdication (“A Coroa em crise: contagem regressiva para a abdicação”). É a história da renúncia do Eduardo VIII ao trono, em 1936, por sua história de amor com a divorciada americana Wallis Simpson, constantemente lembrada cada vez que surge uma nova crise na família Windsor. “Não é nada fácil responder a uma acusação de racismo tão prejudicial, que não traz detalhes concretos”, diz Larman.
Figuras de minorias étnicas cada vez mais influentes na sociedade britânica, como o historiador de origem nigeriana David Olusoga, assinalaram que os duques de Sussex colocaram o dedo na ferida. “Quando se admite o racismo em Grã-Bretanha, ele não é apresentado como algo estrutural, como um problema social, mas sim como uma realidade da própria vida, tanto insignificante quanto lamentável”, escreveu Olusoga no The Guardian. “Esta não é apenas uma crise da família real, mas sim do Reino Unido. E em vez de se aproveitar a ocasião para iniciar uma discussão nacional honesta sobre o racismo, temo que se buscará demonizar ainda mais Harry e Meghan.”
A medida da crise não é dada pelo barulho da mídia, mas pela reação dos afetados. Diante das especulações de muitos supostos especialistas em assuntos reais que previam o silêncio do Palácio de Buckingham em relação ao escândalo − “nunca se queixar, nunca dar explicações”, esse foi sempre o lema −, a casa real divulgou um comunicado poucas horas depois da transmissão da entrevista no Reino Unido. “As questões expostas [pelo príncipe Harry e por Meghan Markle], particularmente a racial, são preocupantes. Embora algumas lembranças possam variar, nós as levamos muito a sério e elas serão abordadas em particular pela família”, dizia o texto. Para os mais críticos, uma resposta insuficiente que procurava lançar dúvidas sobre a versão dos duques de Sussex, e uma tentativa de resolver o assunto internamente. Para os defensores da instituição, uma maneira sutil de se livrar de uma polêmica embaraçosa. “Até os jovens, mais inclinados do que os mais velhos a simpatizar com Markle, estão cansados do apetite insaciável do casal por dinheiro e publicidade”, denuncia Sumption.
A verdade pode estar no ponto intermediário. A pesquisa expressa realizada pelo YouGov refletiu duas realidades complementares. Entre os adultos de 18 a 24 anos, quase 60% mostraram simpatia pelos duques de Sussex. No caso dos maiores de 65 anos, entre 70% e 80% não os suportam. Ao mesmo tempo, a maioria dos britânicos (58%) expressou sua rejeição pelo casal. Principalmente por Markle.
É por isso que a reação do príncipe William, o segundo na linha de sucessão ao trono, ao negar abertamente diante as câmaras que sua família seja racista, expressou ao mesmo tempo sua irritação e a necessidade de responder com veemência a um debate que existe. O Palácio de Buckingham pôde observar em 2020, juntamente com o resto do país, a derrubada ou o anúncio de remoção de estátuas ligadas ao passado colonialista, como as de Edward Colston em Bristol e a de Cecil Rhodes (fundador da antiga Rodésia) na Universidade de Oxford.
No Reino Unido, Meghan Markle não é a heroína em que o público americano a transformou. Para alguns britânicos, é uma nova vilã que tenta seguir o caminho da falecida Lady Di, mãe de seu marido. Para outros, entre eles muitos políticos e intelectuais sérios, é o veículo para enfrentar uma realidade que durante anos se quis esconder debaixo do tapete. Elizabeth II (94 anos) é uma figura intocável. Seu filho e herdeiro, Charles, é o elo fraco que preferiu não entrar na polêmica. Seu neto, William, é a imagem do futuro da instituição. Por isso, foi precisamente ele que se revoltou com as acusações.
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