Gigantescas manifestações na França contra a lei de segurança de Macron
Dezenas de milhares de pessoas protestam contra os limites de filmar policiais e gendarmes em várias cidades do país. Em Paris, alguns grupos provocaram incidentes violentos
Mais de 100.000 pessoas saíram neste sábado na França para protestar contra a lei de Segurança Global promovida pelo Governo de Emmanuel Macron, especialmente pelo controverso artigo 24, que prevê limitar a divulgação de imagens dos agentes das forças da ordem. O maior protesto ocorreu em Paris, onde alguns incidentes violentos provocados por grupelhos de extrema-esquerda mancharam o final de uma “marcha pelas liberdades” convocada pelos jornalistas, políticos da oposição e organizações de direitos humanos que, apesar de tudo, foi majoritariamente pacífica.
Segundo o Ministério do Interior, 133.000 pessoas se manifestaram em todo o país. Os organizadores afirmaram que meio milhão de pessoas foi às ruas. Somente em Paris marcharam pelo menos 46.000, de acordo com os números oficiais. Outras manifestações com forte participação foram em cidades como Marselha, Montpellier, Rennes e Lille, uma semana depois de mobilizações menores pelo mesmo motivo. O parisiense foi o maior protesto e, também, o que registrou alguns episódios de violência que fizeram com que a polícia dissolvesse o final da manifestação com gás lacrimogêneo e caminhões de água. Por volta de meia centena de pessoas foi presa na capital francesa por confrontos com os agentes e por incendiar veículos, mobiliário urbano e até alguns comércios, entre eles uma agência do Banco da França. O ministro do Interior e principal impulsor da polêmica lei, Gérald Darmanin, informou que pelo menos 37 agentes ficaram feridos, em uma nova demonstração, disse, de “inaceitável violência contra as forças da ordem”.
As condições para um protesto maciço estavam dadas. O sábado amanheceu fresco, mas ensolarado e era, além disso, o primeiro dia de “flexibilização” do confinamento nacional, com a reabertura de comércios e a extensão da permissão de sair por três horas e até a 20 quilômetros do domicílio. Mas, principalmente, fervia a indignação. Os franceses vivenciaram os últimos dias de uma “consternação” compartilhada até pelo próprio Macron, após uma sucessão de casos de violência policial revelados por gravações de câmeras que deram mais argumentos do que nunca aos que afirmam que a lei aprovada nesta mesma semana em primeira leitura na Assembleia Nacional é “liberticida” e favorecerá a impunidade policial. Após o desmantelamento violento na segunda-feira de um acampamento de imigrantes na praça da República, centro de Paris – ponto de partida neste sábado da manifestação na capital – na quinta-feira foi divulgado o brutal espancamento de vários agentes em Michel Zecler, um produtor musical negro. O incidente foi gravado por uma câmera de segurança e por moradores. O artigo mais controverso da lei é o 24, que prevê penas de até um ano de prisão e 45.000 euros (287.000 reais) de multa por difundir imagens de policiais e gendarmes com a intenção de prejudicá-los.
“A França é o país dos direitos humanos e é normal que se proteja a polícia, mas ela não pode ser priorizada em detrimento da população. Esta lei é ruim”, disse Alexandre, jovem que participou do protesto de Paris com um grupo interracial de amigos. “O problema do racismo sempre esteve aí, mas vejo que cada vez há mais gente, não só negros, que entendem a situação, pessoas de todos os estratos sociais e idade”, comentou ao seu lado Césaire, um jovem negro que acaba de finalizar seus estudos e procura seu primeiro emprego.
“Não é normal que tenhamos medo da polícia, até eu, que sou branca e mulher, tenho”, disse também Lucie Lafargie, uma adolescente que se manifestou com suas duas irmãs e seus pais. “Na democracia não há nada mais antidemocrático do que impedir de filmar. Com George Floyd vimos a importância de gravar” a polícia, afirmou sua mãe, Marie, que disse se sentir “enojada” pelas cenas de racismo policial denunciadas no país nos últimos meses.
A Marcha pelas Liberdades foi convocada pelo comitê Stop a Lei de Segurança Global, composto por sindicatos, associações de jornalistas e organizações de direitos humanos, entre outros. “Sem imagens difundidas pela sociedade civil, a violência policial ficará impune. Não queremos uma sociedade onde o Estado pode ver com drones e câmeras nas ruas sem ser visto”, afirma seu manifesto.
A manifestação parisiense foi da Praça da República à da Bastilha, onde foram registrados os principais incidentes. O protesto da capital contou com a participação de representantes dos sindicatos e organizações jornalísticas, como a Repórteres Sem Fronteiras, assim como os responsáveis dos principais partidos de esquerda, do socialista Olivier Faure, que marchou ao lado do líder dos ecologistas, Yannick Jadot, ao líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon e o ex-candidato presidencial socialista Benoît Hamon. Faure denunciou a “brecha crescente” entre a polícia e uma parte da sociedade, em que “o Governo tem forte responsabilidade”. O artigo 24 da Lei de Segurança Global deu um sinal de impunidade aos policiais violentos”, lamentou e pediu a retirada de “todos os artigos liberticidas” da polêmica lei. Mélenchon quer uma “refundação da polícia (...) para reconstruir os vínculos de confiança com a sociedade”.
Tanto o artigo 24 como o restante da lei já sofreram diversas modificações segunda-feira graças à maioria de Macron na Assembleia Nacional. As imagens da surra no produtor musical Zecler, divulgadas na quinta, provocaram, entretanto, uma forte tempestade dentro do Governo, cuja resposta, propor uma comissão independente que volte a redigir o artigo 24 da lei, não conseguiu acalmar os ânimos do país, como as manifestações deste sábado demonstraram. Além disso, provocou uma crise política que fez com que o Executivo confrontasse até mesmo seus deputados, muito irritados, da mesma forma que outros parlamentares, pelo “curto-circuito” que sentem ter significado a proposta de que uma comissão não parlamentar revise um texto legal que ainda está sendo trabalhado pelo poder legislativo. Por fim, o primeiro-ministro, Jean Castex, precisou retroceder na sexta-feira e afirmar que a comissão não reescreverá a lei, apesar do mal-estar político também não ter se dissipado.
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