Chile inicia o caminho a um novo modelo de país sem o entrave da ditadura
Um dos desafios da nova Constituição será lidar com as demandas da população por mais direitos sociais
Após a esmagadora vitória da opção de mudar a Constituição de 1980 (78,27% conta 21,73%) no referendo realizado no domingo, começa a partir de segunda-feira no Chile uma nova etapa: a eleição de 155 constituintes, em 11 de abril. Serão eles que irão redigir a nova Carta Fundamental que substituirá a vigente há 40 anos, desde a ditadura de Augusto Pinochet. A convenção terá entre nove meses e um ano para trabalhar em um texto que delineará um novo modelo de país e que deverá estar pronto em junho de 2022. Um dos nós de maior tensão, que já se debate entre os constituintes, será a discussão sobre os direitos sociais.
Existem questões importantes que atravessam os diferentes setores políticos, como o próprio sistema de governo, onde há partidários do presidencialismo, o semipresidencialismo e o parlamentarismo, tanto no oficialismo de direita como na oposição. “Mas nos direitos sociais provavelmente se replicará a discussão no eixo direita-esquerda, porque a direita está muito assustada com esse assunto. Expressou o temor de que a garantia de direitos sociais exigíveis na Constituição levará o país a uma quebra e que será uma política pública estabelecida na Carta Fundamental, o que é absurdo”, opina Claudia Heiss, chefa da cadeira de Ciência Política da Universidade do Chile, que foi integrante da comissão técnica ao processo constituinte em 2019 pela Frente Ampla, um conglomerado de esquerda.
“Na direita existe o medo à judicialização, ou seja, que em nome dos direitos sociais seja a Justiça a obrigar o Estado a designar recursos. Mas é um medo infundado”, segundo Heiss. “Hoje em dia, no Chile há uma agenda robusta em demanda de direitos sociais como parte do mandato que o plebiscito deu ontem e a explosão social de outubro de 2019”, acrescenta. Para a cientista política, os direitos sociais em uma Constituição dão um sinal ao sistema político para orientar as sentenças judiciais e o Legislativo. “Não se trata de enumerar direitos, mas deveriam estar, no mínimo, o direito à educação, saúde, aposentadorias, moradia, trabalho e meio ambiente”, conclui.
A constitucionalista Constanza Hube, professora de Direito da Universidade Católica, diz que “sem dúvida, um ponto central da discussão será quais direitos sociais serão incorporados na nova Constituição, de que maneira se pretende garantir esses direitos sociais e se será permitido que a sociedade civil possa participar da solução dos problemas públicos”. “Esse último ponto me parece prioritário e ―lamentavelmente―, a partir de uma discussão ideológica não há consenso para evitar que seja somente um monopólio do Estado”, afirma Hube, que no plebiscito de domingo votou contra substituir a Constituição vigente e provavelmente será candidata a integrar a convenção constitucional pelo oficialismo.
Javier Couso, constitucionalista chileno e professor da Universidade de Utrecht, afirmou que apesar da Carta Fundamental atual ter sofrido 53 reformas, “jamais foi possível tocar nos aspectos neoliberais e mais ideológicos da Constituição, onde se garantem as soluções privadas para problemas públicos na educação, saúde e a própria segurança social”.
Hube não concorda: “Não é correto o debate instalado de que a Constituição atual seja neoliberal, porque uma Constituição não estabelece modelos de sociedade e modelos econômicos”. O que é efetivo, diz, “é que a Constituição vigente é incompatível com determinados sistemas econômicos, como a economia centralmente planificada. Mas este texto permitiu levar o Chile de um modelo de mercado a outro social de mercado e o Estado em 30 anos não encolheu, pelo contrário”.
A professora da Universidade Católica acrescenta: “É interessante manter os direitos sociais que temos hoje em dia, porque refletem o avanço gradual e não o retrocesso: o direito a receber uma retribuição justa pelo trabalho, direito à proteção da saúde, o direito à educação, à segurança social”. Mas se reconhece “cautelosa” em relação a novos direitos que poderiam ser acrescidos ao novo texto. “É preciso ser responsável e evitar as ofertas ilimitadas de direitos sociais para não continuar gerando expectativas. Não podem ser garantidos por meio de recursos de proteção, porque corre-se o risco de judicializar a política”.
Para Tomás Jordán, advogado e coordenador do processo constituinte do segundo Governo de Michelle Bachelet (2014-2018), na atual Constituição “existe um desequilíbrio com os direitos sociais”. “Em 1980 foi feita uma opção ideológica a favor dos direitos econômicos, deixando de lado o olhar social, de tradição europeia, onde a Constituição é um marco para habilitar o jogo democrático, por um lado, e para adotar medidas que permitam corrigir as desigualdades sociais, por outro”, afirma o jurista. “Este último ponto não existe em nossa Constituição”.
Uma convenção paritária
A convenção que fará esse debate será paritária entre homens e mulheres. A eleição de seus integrantes em 11 de abril será sob as mesmas regras da Câmara dos Deputados. O esmagador apoio a uma convenção constitucional composta por 155 pessoas especialmente eleita para redigir a Carta Fundamental (78,99% contra 21,01% que preferiu um órgão composto em partes iguais por parlamentares), “mostra um repúdio à classe política em seu conjunto”, de acordo com Sylvia Eyzaguirre, pesquisadora do Centro de Estudos Públicos (CEP). “Alguns dirigentes e partidos quiseram tomar para si o triunfo, como se fosse da oposição e o fracasso, do Governo. Mas é o fracasso dos partidos políticos”, acrescenta a doutora em Filosofia.
Eyzaguirre assinala que se trata de um “enorme desafio” que o Chile tem pela frente: “As pessoas precisam sentir que o órgão que escreverá a Constituição será legítimo”. Quando os diferentes setores políticos e técnicos acertaram as regras do plebiscito que por fim foi realizado ontem, se optou por propor à população “uma figura complexa”, de acordo com a pesquisadora do CEP. “Vamos escolher os convencionais com o mesmo sistema com que escolhemos os deputados”, afirma, de modo que se corre o risco de que seja um espelho das forças da Câmera. Eyzaguirre era partidária de um órgão por sorteio, como foi na Islândia, e de uma lista única nacional, que é proporcional e dá muitas oportunidades aos diversos movimentos de ser eleitos. “No Chile, além disso, há dificuldades para formar partidos políticos e muitas travas aos independentes”.
O oficialismo de direita do Governo de Sebastián Piñera e os partidos de oposição começam uma corrida contra o relógio para chegar respectivamente unidos à eleição de convencionais em 11 de abril. Tem uma importância fundamental: enfrentar divididos essa data tem um custo grande para conseguir os dois terços necessários na convenção para aprovar os conteúdos da nova Constituição.
Para Alfredo Joignant, professor da Universidade Diego Portales, “quanto mais desunida estiver a oposição, será melhor para a direita”. “E, obviamente, a situação é melhor para o oficialismo, porque o número de partidos é menor. São três ou quatro, enquanto na oposição existem pelo menos 15”, acrescenta Joignant. “De qualquer forma” ―conclui―, “não vislumbro que ninguém irá esmagar ninguém, pelas regras eleitorais que regulamentam a maneira como a convenção será eleita”, diz o pesquisador principal do Centro de Estados de Conflito e Coesão Social (COES), que considera um erro pensar que no Chile a direita só representa 21,73% que obteve ontem a opção dos que recusavam uma nova Constituição.
O debate sobre a participação
No histórico plebiscito realizado no domingo no Chile, a participação foi de 50,9%. “Subimos mais de um ponto em comparação ao segundo turno presidencial de 2017, mas o Chile continua parado em 50% de abstenção”, diz Alfredo Joignant, professor da Universidade Diego Portales. “Era um referendo em que estavam em jogo assuntos cruciais, o processo eleitoral mais importante desde 1988 [do referendo a favor e contra Augusto Pinochet]. E apesar disso, só pouco mais de 50% dos chilenos votaram. Há países que com pandemia tiveram taxas de participação muito importantes, e o Chile, não”, acrescenta Joignant.
Ele enumera algumas hipóteses, além do efeito da pandemia: que o grupo de 60 anos ou mais não tenha comparecido às urnas pelo medo dos contágios e que tenham sido maciçamente substituídos pelos jovens, um abstencionismo importante das pessoas que se dizem de direita ―porque baixou a participação nas áreas ricas de Santiago― e que se tratava de um plebiscito de resultados muito conhecidos, sem surpresas. “De tudo, o que mais me alegra é que tenha aumentado a participação em regiões populares de Santiago, como La Pintana, que passou de 36% a 50%. As diferenças de desigualdade política de voz foram reduzidas, mas não anuladas”.
Mas há quem opine que 50,9% da participação é uma boa porcentagem, porque ocorre em um contexto de pandemia, estado de exceção constitucional ―com toque de recolher― e com o país sofrendo um “abstencionismo estrutural”, como o chama Marcela Ríos, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No Chile, a baixa participação foi um fenômeno que surgiu com a implementação do voto voluntário em 2012 (a participação caiu de 87% em 1989 para 49% no segundo turno presidencial de 2017, com um mínimo histórico de 36% nas eleições municipais de 2016).
O de domingo, além disso, congregou o maior número de eleitores na história do Chile: 7.562.173 pessoas participaram do plebiscito. Segundo Joignant, entretanto, “nessas coisas é preciso comparar laranjas com laranjas”. “Os eleitorados se expandem e o padrão está em 14,8 milhões de pessoas. O que se pode comparar, portanto, são as porcentagens”.