Ex-presidente uruguaio José ‘Pepe’ Mujica formaliza renúncia ao Senado e se retira da política
Pandemia precipitou decisão do ex-líder, de 85 anos, que sofre de doença autoimune
O ex-presidente uruguaio (2010-2015) José Pepe Mujica formalizou nesta terça-feira a renúncia à sua cadeira no Senado e, com isso, retirou-se definitivamente da política ativa. A renúncia de um dos líderes mais importantes da esquerda latino-americana foi precipitada pela pandemia de covid-19, porque o ex-presidente, de 85 anos, sofre de uma doença autoimune. “Esta situação me obriga, com grande pesar por minha profunda vocação política, a solicitar que se tramite minha renúncia à cadeira que os cidadãos me concederam”, escreveu Mujica em uma carta lida nesta terça-feira em sessão extraordinária do Senado. “A pandemia me expulsou”, acrescentou. “Na vida, há uma hora para chegar e uma hora para partir”, assinalou o ex-presidente sobre sua renúncia ao Senado, algo que já havia antecipado meses atrás e reiterado no dia das eleições municipais realizadas em 27 de setembro.
“O ódio é fogo como o amor, mas o amor cria e o ódio nos destrói”, disse Mujica em seu breve discurso durante uma sessão extraordinária da Câmara Alta, na qual também renunciou o ex-presidente (1985-1990 e 1995-2000) Julio María Sanguinetti. “Eu tenho minha boa quantidade de defeitos, sou passional, mas no meu jardim faz décadas que não cultivo o ódio, porque aprendi uma dura lição que a vida me impôs, que o ódio acaba idiotizando, ele nos faz perder objetividade”, acrescentou.
Depois dos discursos de despedida dos senadores de esquerda e de direita, Mujica pediu a palavra para agradecer o quanto haviam sido “elogiosos” em relação a ele. “Vencer na vida não é ganhar, é levantar e recomeçar toda vez que caímos”, disse.
O agora ex-senador, cuja cadeira na Câmara Alta será ocupada por Alejandro Sánchez, também da Frente Ampla, referiu-se à nova era que lhe coube viver, dominada pela tecnologia, e negou que pense em algum sucessor ― já que muitos apontam Sánchez e Yamandú Orsi, governador de Canelones, como seus ‘filhos políticos’. “Em política não há sucessão, há causas. Todos passamos, algumas causas sobrevivem e têm de ser transformadas, e a única coisa permanente é a mudança. A biologia impõe mudanças, mas também precisa existir a atitude de dar oportunidade às novas gerações”, assinalou.
Em uma entrevista prévia à imprensa uruguaia, esclareceu que sua saída foi provocada pela pandemia. “Eu nem planejava ir [ao Senado], ia enviar um papelzinho, mas a vice-presidenta me ligou e... não sei, ela queria que houvesse um pouco de glamour. E eu lhe disse: ‘Está bem, vou’ ― terei de dizer alguma coisa. Mas estou saindo do Senado porque esse coronavírus me botou para fora. Porque tenho 85 anos, quase 86, tenho uma doença imunológica, uma doença bem estranha, que não é qualquer doença, é dessas que os médicos ficam analisando e você percebe que não sabem porcaria nenhuma. E não posso nem me vacinar. Adoro a política, mas adoro mais esticar a vida o quanto puder”, disse, com o mate na mão e o estilo descontraído que o caracterizam.
José Mujica nasceu em Montevidéu em 1935 e entrou em 1964 no grupo guerrilheiro Movimento de Libertação Nacional―Tupamaros. A ditadura militar o manteve preso por um total de 15 anos, incluindo um período de 12 anos seguidos que terminou em 1985. Foi um dos chamados “reféns” do regime militar, presos políticos que seriam executados caso seu grupo retomasse a luta armada. Seus anos de isolamento na prisão foram retratados em 2018 no filme Uma Noite de 12 Anos.
Em 1985, com o retorno à democracia, Mujica foi beneficiado por uma anistia geral decretada para pacificar ao país. Voltou então à política ativa. Passou pelo Senado, foi ministro da Agricultura e, finalmente, presidente do Uruguai de 2010 a 2015. Nunca deixou de viver em sua casa de campo nem perdeu seu estilo cordial, seu jeito claro e direto de falar e seus costumes humildes. Hoje, Pepe Mujica é a voz mais respeitada da esquerda latino-americana.