Bolívia vota dividida em duas, à sombra de Evo Morales e das Forças Armadas
Luis Arce, candidato do ex-presidente, disputa o primeiro turno com o centrista Carlos Mesa, em meio a previsões de violência e de resultados apertados
A Bolívia chega às eleições deste domingo dividida por uma forte polarização política e social. As três principais forças na disputa alertaram que seus rivais rejeitarão os resultados ou cometerão fraudes e causarão violência. O Governo interino de Jeanine Áñez tomou partido abertamente contra um dos candidatos, Luis Arce, do Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales. As forças de segurança estão “prontas para evitar a convulsão” que supostamente causarão os simpatizantes desse candidato. Nesta semana, o ministro do Defesa, Fernando López, fez um ato com os militares para comemorar a morte de Che Guevara em solo boliviano, uma provocação ao MAS, e disse que “as Forças Armadas estão prontas” e que “os terroristas cubanos, venezuelanos, argentinos, ou de onde seja, vão encontrar a morte em nosso território”. Em meio ao nervosismo, a população correu para fazer estoques de combustíveis e alimentos nos últimos dias, o que causou filas e escassez.
Soma-se às previsões de conflitos violentos a expectativa de que os resultados eleitorais sejam muito apertados. Na tarde deste sábado, o Tribunal Eleitoral anunciou que não haverá a transmissão da contagem rápida de votos, o médodo que foi interrompido nas eleições de outubro do ano passado, gerando denúncias de supostas fraudes. Na ocasião, a contagem foi retomada 22 horas depois, com vitória apertada no primeiro turno do ex-presidente Morales. “Os resultados dos testes não nos permitem ter a certeza da divulgação completa dos dados que oferecem segurança ao país”, disse o presidente da autoridade eleitoral, Salvador Romero, durante entrevista coletiva. “É por isso que, com seriedade técnica e motivado pela responsabilidade com o país, o Tribunal Supremo Eleitoral decidiu retirar a divulgação dos resultados preliminares do dia da votação”, disse Romero, que na véspera havia garantido que a transmissão dos dados. O tribunal, disse Romero, divulgará resultados parciais após o encerramento das urnas.
Todas as pesquisas apontam a vitória de Arce, ex-ministro de Fazenda durante 11 dos quase 14 anos de Governo de Morales (ele se afastou brevemente do cargo para tratar um câncer renal). A dúvida é se Arce vencerá com vantagem suficiente para ser eleito presidente no primeiro turno ou se terá de disputar um segundo turno, marcado para 29 de novembro, com o ex-presidente (2003-2005) Carlos Mesa, um candidato de centro que se apresenta como o único capaz de conseguir a reconciliação dos bolivianos. Para um eventual segundo turno, as pesquisas dão vantagem a Mesa.
A Bolívia vive uma grave crise política há um ano. As eleições de 20 de outubro de 2019, nas quais Evo Morales renovou seu mandato pela terceira vez consecutiva, foram rejeitadas por protestos em todas as cidades do país. Os manifestantes ecoaram a denúncia de fraude eleitoral feita pelo candidato que ficou em segundo lugar, o mesmo Carlos Mesa, mas foram comandados por um líder regional então pouco conhecido, Luis Fernando Camacho, originário de Santa Cruz, baluarte da oposição a Morales. Durante 21 dias, a economia do país ficou paralisada. Finalmente, a polícia se amotinou e as Forças Armadas se voltaram contra o Governo. Morales renunciou, fugiu para o México e, depois, refugiou-se na Argentina, onde ainda mora. Na semana seguinte ao seu exílio, ocorreram atos de violência e repressão que deixaram mais de 30 mortos e centenas de feridos.
Áñez, uma senadora da oposição que assumiu a presidência por sucessão constitucional, prometeu então convocar eleições o mais rápido possível, mas a pandemia impediu. As eleições − das quais Áñez, surpreendentemente, decidiu participar ― foram adiadas duas vezes. Em agosto, o MAS organizou um bloqueio de estradas contra o último adiamento. O MAS representa principalmente os setores indígenas ― rurais e urbanos ― do país.
Em setembro, depois de uma gestão muito criticada da crise sanitária, Áñez se convenceu de que já não conseguiria subir nas pesquisas e renunciou à sua candidatura para facilitar a concentração do voto anti-MAS. Essa estratégia deu certo em parte, já que melhorou a posição de Mesa nas pesquisas, mas não conseguiu atrair o líder regional “que derrotou Evo Morales”, Camacho, que também concorre à presidência. Pelo contrário, este novato da política aproveitou a saída de Áñez para se projetar como candidato da região oriental da Bolívia, tradicionalmente hostil a La Paz, a capital administrativa do país, de onde vem Mesa. O discurso regionalista permitiu a Camacho atrair um eleitorado muito motivado e aparentemente imune à pregação do “voto útil” em quem puder deter o MAS (ou seja, em Mesa).
Em um vídeo que viralizou nos últimos dias, um jovem eleitor de Santa Cruz diz: “Antes de culpar Santa Cruz pelo que acontecer na campanha, pare e pense um pouco. (…) Supunha-se que o masismo sem Evo Morales e uma fraude eleitoral não seria uma ameaça, mas aí está ele, liderando as pesquisas. Culpa dos cruceños? Claro que não, parente! (…) Será que Santa Cruz não tem o direito de ter gente que a represente neste Governo centralista?”. O jovem conclui perguntando por que os eleitores de Santa Cruz deveriam entregar “a coroa” a alguém que não os representa, inclusive à custa de uma vitória do MAS no primeiro turno, como realmente pode ocorrer. Na quarta-feira, Camacho encerrou sua campanha com um discurso em que chorou, pediu que Deus “governe a Bolívia” e rezou para que neste 18 de outubro “seja feita a sua vontade”.
Tanto Áñez como seu poderoso ministro do Governo (Interior), Arturo Murillo, e outros altos funcionários do Governo e do partido da presidenta aderiram à estratégia do “voto útil”. Vários líderes de opinião locais pintam com cores trágicas a possibilidade de um novo Governo do MAS. Dizem que o partido de Morales planeja se vingar de quem participou de sua derrubada no ano passado. E afirmam que o ex-presidente, a personalidade mais rejeitada nas pesquisas, voltará ao país imediatamente depois de uma vitória de Arce e o manipulará como um “fantoche”.
No campo da “guerra suja”, circula no WhatsApp um grande número de mensagens para atemorizar a classe média anti-MAS diante da possibilidade de vitória desse partido. Seus autores procuram garantir que esse setor compareça às urnas, deixando de lado o risco de contágio, ou simplesmente criar um ambiente de inquietação. Uma dessas mensagens “informa” que os camponeses estão se armando para atacar as cidades. Outra afirma que Arce renunciará após assumir a presidência, entregará o poder a Morales e este, como presidente ditatorial do país, dissolverá as Forças Armadas e a polícia. E assim por diante.
Do outro lado, alguns porta-vozes do MAS declararam que só pode haver segundo turno em um caso: se “a direita golpista” cometer fraude. Assim, conclamaram os sindicatos a estar preparados para se mobilizar a qualquer momento. Respondendo às acusações, Arce prometeu que governará sozinho e “para todos os bolivianos”, acrescentando que Morales terá de se defender na dezena de processos contra ele por crimes que vão do estupro ao terrorismo. No encerramento de sua campanha, o candidato do MAS se encomendou aos deuses tutelares indígenas.
Uma questão que pode ser a faísca para incendiar o barril de pólvora é o voto dos bolivianos no exterior. Eles representam mais de 3% do eleitorado e, tradicionalmente, cerca de 70% deles votam no MAS. Por isso, o partido teme que desta vez esse voto sofra alguma restrição. O Tribunal Eleitoral afirmou que fará tudo que for necessário para garantir que os emigrantes bolivianos votem, mas sabe-se que as restrições sanitárias em alguns países impedirão que sejam abertos alguns centros de votação, como por exemplo no Panamá, em cidades do norte do Chile e na província argentina de Mendoza.
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