Paul Krugman: “Estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável”

Prêmio Nobel de 2008, o economista americano lamenta em entrevista ao EL PAÍS que, diante de um novo “buraco” econômico, “os amortecedores do carro já foram usados”

O prêmio Nobel de Economia 2008, Paul Krugman.

No escritório de Paul Krugman (Albany, Nova York, 1953) reina a desordem que se poderia imaginar em um economista provocador e hiperativo, prolixo em artigos, em livros e, o mais polêmico, em previsões do futuro. Nobel de Economia de 2008, é membro destacado do clube de economistas americanos de tendência progressista, como os também premiados Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs. Integra também essa legião de democratas que não previram os estragos que a globalização —unida à robotização— causaria em partes da sociedade americana. Seu último livro, Arguing with Zombies: Economics, Politics, and the Fight for a Better America (“discutindo com zumbis: economia, política e a luta por uma América melhor”), de 2019, reúne artigos publicados nos últimos 15 anos, alguns no EL PAÍS, sobre assuntos como a Grande Recessão, a desigualdade e, é claro, Donald Trump. Dois bonés parodiando o lema eleitoral do republicano −Tornemos a Rússia grande de novo, Tornemos a ignorância grande de novo− se misturam em sua mesa com o último livro do economista sérvio-americano Branko Milanovic. “As pessoas enviam para mim, não sei”, comenta, rindo, o professor Krugman. Diz que ser comentarista na mídia “nunca fez parte do plano”. No entanto, ele é um dos economistas mais expostos da atualidade.

Pergunta. O senhor diz que hoje em dia tudo é político e que é preciso ser sincero sobre a desonestidade. Pode explicar?

Resposta. Em um debate econômico, muitas pessoas constroem argumentos de forma pouco honesta, falseiam ou deturpam os fatos, servem basicamente aos interesses de um grupo. E se você está tentando debater com essas pessoas, o que deve fazer? Fingir que é um debate sincero, responder com dados e explicar por que elas estão equivocadas? Ou dizer: “A verdade é que você não está sendo sincero”? Depende do contexto. Em uma publicação econômica, não falaria de desonestidade com pessoas com pontos de vista diferentes. Mas se você está escrevendo para um jornal e essa desonestidade é generalizada, é injusto que os leitores não saibam disso. Por exemplo, você basicamente não encontrará economistas honestos que digam que uma redução de impostos se pagará sozinha [como prometeu Donald Trump com seu grande corte fiscal]. Temos muitos exemplos de que não é assim, mas as pessoas continuam dizendo isso.

P. Acredita que existe a racionalidade econômica, ou a política sempre se impõe em alguma medida?

R. A análise econômica não é inútil, ou nem sempre. Há políticos que escutam e fazem as coisas bem. Acredito que as políticas de Barack Obama foram influenciadas por um bom pensamento econômico, mas muitas coisas ele não pôde fazer porque não tinha o poder do Congresso.

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P. Dani Rodrik disse uma vez que o sucesso econômico dos Estados Unidos se devia ao fato de que, em última instância, o pragmatismo sempre vence, e que a política era mais protecionista, liberal ou keynesiana conforme as necessidades. Também pensa assim?

R. Os Estados Unidos tendiam a ser pragmáticos, mas não tenho certeza de que ainda sejamos esse país. É por isso que falo de ideias zumbis em meu livro. Há muitas coisas que sabemos que não funcionam, mas as pessoas continuam a dizê-las por motivos políticos. Não acredito que ainda sejamos esse país pragmático de 50 anos atrás.

P. Rodrik afirma que, de fato, isso mudou a partir de Ronald Reagan, nos anos oitenta. O senhor trabalhou como economista para essa Administração...

R. Isso foi divertido.

P. O que lembra sobre aqueles dias?

R. Bem, eu era um tecnocrata. Era o chefe de economia internacional no Conselho de Assessores Econômicos, e Larry Summers era o economista-chefe. Éramos dois democratas de carteirinha, trabalhando em assuntos técnicos. Foi fascinante ver como era o debate sobre as políticas. Provavelmente a Administração Reagan foi pior que as anteriores. Você via um monte de gente que não tinha nem ideia do que estava falando. Também aprendi como é difícil conseguir que algo seja feito. Isso faz você perceber que não vai mudar o mundo apenas por ter uma ideia inteligente.

P. Há quem situe naqueles anos de desregulamentação o início das desigualdades nos EUA.

R. Sim, é uma grande ruptura no rumo da economia americana, em direção a uma maior desigualdade e ao desmoronamento do movimento trabalhista. Reagan teve um grande impacto no tipo de economia que os EUA eram. Nunca nos recuperamos.

P. Muita gente também critica o consenso dos anos noventa [durante a Administração de Bill Clinton] sobre a globalização. O senhor mesmo mudou seu ponto de vista.

R. Ainda acredito que a globalização, em seu conjunto, funcionou bem. Do ponto de vista global, fez mas bem que mal. Possibilitou o crescimento de economias pobres em direção a um padrão de vida decente. Depois, também foi um fator de desigualdade em algumas comunidades específicas nos EUA.

P. Os economistas também vivem em uma bolha, como se diz, às vezes, a respeito dos jornalistas?

R. É claro que observar o que acontece com seus amigos é uma forma muito ruim de julgar o que acontece no mundo. E ver apenas o que as pessoas publicam em estudos pode ser um problema, porque esses autores podem ter pontos cegos. Nunca imaginei que a globalização teria apenas ganhadores, sem perdedores. O que não vi é algo muito específico, que é até que ponto algumas comunidades concretas ficariam tão mal. Perguntávamos o que iria acontecer com os trabalhadores do setor manufatureiro e pensávamos que provavelmente seu salário real [descontando o efeito da inflação] cairia em torno de 2%, o qual não é pouco, mas também não é enorme. O que não consideramos foi o que iria acontecer com as cidades da Carolina do Norte dedicadas apenas à indústria de móveis. E o fato é que [a globalização] estava destruindo essas cidades. Isso eu não soube ver porque o mundo é muito grande e, efetivamente, não conheço nenhum trabalhador do setor de móveis de Hickory, Carolina do Norte.

“A próxima crise vai vir de várias coisas ao mesmo tempo, uma mistura de muitas coisas pequenas”

P. Essa crise industrial é frequentemente usada para explicar a ascensão do trumpismo. Acredita que isso também tem a ver com o crescimento do socialismo?

R. Não, são histórias distintas. A tecnologia tem sido mais importante que o comércio em relação ao pessoal da indústria. Se você observar os lugares mais favoráveis a Trump, são as zonas de carvão, e não porque perderam as exportações, nem pelas políticas ambientais, que são algo muito recente. O declínio se deve à mudança tecnológica, ao fato de que paramos de enviar tantos homens para as minas e usamos sistemas que precisam de menos mão-de-obra. Quanto ao socialismo... na verdade, em primeiro lugar, não acredito que existam muitos socialistas nos Estados Unidos.

P. Acredita que esse suposto crescimento do socialismo é superestimado?

R. Existem muitas pessoas que se definem como socialistas, mas são social-democratas. Em geral, são pessoas jovens e altamente qualificadas que veem o quanto é difícil ganhar a vida com essa economia. E nos últimos 60 anos, toda vez que alguém propôs algo para facilitar a vida das pessoas, foi chamado de socialistas pelos grupos de direita. Por isso, muita gente acaba dizendo: “Se isso é socialismo, então sou socialista”. Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, representa uma mistura de pessoas formadas, de cor, em uma área muito democrata. Bernie Sanders diz: “Quero que sejamos como a Dinamarca”. Bem, a Dinamarca não é socialista, e sim uma forte social-democracia.

P. Fala-se muito da virada para a esquerda do Partido Democrata nas primárias. Acredita que eles estão indo longe demais?

R. Não, mesmo que Bernie Sanders se torne presidente, seu programa será mais gradual. Fico um pouco preocupado com que os democratas sejam retratados como radicais. Muitas das coisas que eles defendem, inclusive os mais esquerdistas, como aumentar os impostos dos ricos e ampliar a assistência social e a saúde pública −sem eliminar os seguros privados−, são bastante populares entre as pessoas. O problema é se fizerem com que essas coisas pareçam perigosas. É interessante o que ocorreu no Reino Unido. [O líder trabalhista] tinha um programa bastante radical em 2017 e teve um bom desempenho nas urnas. Em 2019 não era mais radical, mas foi mal devido à questão do antissemitismo e ao Brexit. Portanto, não tenho certeza de que o esquerdismo seja um problema para os democratas, [o que eles não devem fazer] é cair em coisas que alienem as pessoas.

P. O senhor diz que aumentar impostos dos ricos é popular. Quem é rico? O senhor deveria pagar mais do que paga?

R. Depende. Elizabeth Warren quer ir atrás das pessoas com mais de 50 milhões de dólares [209 milhões de reais], essas são claramente ricas. Obama aumentou impostos. Sua reforma de saúde foi paga em boa medida pelo aumento de impostos para quem ganhava mais de 250.000 dólares [1,04 milhão de reais] ao ano. Houve quem reclamasse que teria dificuldade para chegar ao fim do mês e, é claro, virou piada. Quanto a mim, muito bem, vou dizer desta forma: esse imposto sobre as grandes fortunas proposto por Warren não me afetaria, mas qualquer democrata que faça as coisas que eu gostaria de ver na política econômica acabaria precisando que eu pagasse mais impostos. E tudo bem com isso. Não sou santo, mas estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável.

“Dos candidatos democratas, Warren é sem dúvida quem tem melhores ideias em matéria de políticas”

P. Apoia algum pré-candidato específico?

R. Não posso fazer isso, o The New York Times nos proíbe de declarar um apoio explícito, porque se um colunista faz isso, essa posição é atribuída ao jornal [a entrevista foi feita antes que o conselho editorial do The New York Times manifestasse seu apoio às candidatas democratas Elizabeth Warren e Amy Klobuchar]. O que posso dizer é que quem tem as melhores ideias em matéria de políticas é Warren, claramente. Ela tem pessoas muito inteligentes, embora eu ache que avaliou mal a questão da saúde [Warren iniciou sua campanha defendendo a eliminação dos seguros privados, agora se mostra mais flexível]. De qualquer forma, acredito que todos os democratas seriam bastante parecidos do ponto de vista de suas políticas. A de Sanders é a mais expansionista, mas ele não poderia levá-la adiante no Senado e acabaria sendo mais gradual. Talvez Joe Biden seja o mais moderado, mas todo o partido se moveu para a esquerda. Não tenho ideia de quem vai ter mais opções nas urnas. Acho que ninguém sabe. O que espero −e certamente também não é permitido dizer, segundo as regras do Times− é que Trump não ganhe.

P. O senhor é um dos que temiam que as políticas de Trump trouxessem uma recessão global. Como vê isso agora?

R. Eu disse isso na noite das eleições, levado pela emoção, mas me retratei em seguida. As consequências econômicas de Trump foram bastante tênues. O déficit aumentou e ele tem sido protecionista, mas se tivesse conseguido revogar a reforma de saúde [da Administração Obama], muita gente teria ficado em má situação, e pelo menos ele não conseguiu. Se você observar a tendência do emprego dos últimos 10 anos, não saberia se houve eleições nesse período. Talvez tenhamos um pouco menos de investimento devido à incerteza da guerra comercial e um pouco mais de consumo devido à redução de impostos e ao aumento do valor da Bolsa, mas há pouca diferença entre os números da economia com Trump e com Obama.

P. Outro prêmio Nobel [Kenneth Arrow] disse que as forças da economia são mais importantes que o impacto de um Governo.

R. Sim, na maior parte do tempo. As políticas monetárias podem importar muito, mas isso não está sob o controle de um presidente. Estes só têm muita importância em tempos de crise. Se Obama não houvesse promovido esses estímulos e o resgate dos bancos, teria sido muito grave.

P. Como imagina a próxima crise?

R. É difícil. De vez em quando se vê algo tão claro que a crise é previsível, como a bolha imobiliária, que foi um ciclo óbvio. Mas agora não há nada assim. O que quer que seja, não parece óbvio. Provavelmente a próxima crise virá de várias coisas ao mesmo tempo, uma mistura de muitas coisas pequenas. Também tivemos esse tipo de crise, a recessão de 30 anos atrás, por exemplo.

P. Essa próxima recessão encontrará as economias do G10 com taxas de juro zeradas.

R. Sim, essa é a principal preocupação.

P. Qual é a política cambial correta nesse caso?

R. Não tenho certeza. O que mais me preocupa não é ignorar de onde virá a crise, e sim o fato de não saber como responderemos. O Banco Central Europeu não pode baixar mais os juros, eles já são negativos. E a Reserva Federal [banco central dos EUA] tem pouca margem para fazer isso. Vamos nos deparar com um buraco na estrada e os amortecedores do carro já foram usados. Nesse caso, a política econômica do Governo ajuda, mas temo que talvez não tenhamos gente muito boa tomando decisões. Em 2008, tivemos sorte de ter pessoas inteligentes para enfrentar a crise. Agora a Europa não tem nenhuma liderança e Estados Unidos têm Trump. Não está claro que tenhamos uma boa resposta.

P. Que efeitos terá o Brexit?

R. O Brexit é negativo, prejudicará a economia britânica e a do resto da Europa, mas no longo prazo, não serão grandes números. As tarifas britânicas provavelmente serão mínimas, não será uma união alfandegária, mas haverá poucos impostos. Estados Unidos e Canadá têm um acordo de livre comércio sem união alfandegária. Assim, em uns cinco anos, o Reino Unido será um pouco mais pobre, talvez 2%, mas não será radical. O que acontecerá nos próximos seis meses é que assusta as pessoas.

“Em uns cinco anos, o Reino Unido será um pouco mais pobre, talvez 2%, mas não será radical”

P. O euro foi responsabilizado por muitas das disfunções da União Europeia, mas no final é um país com outra moeda que está saindo do bloco.

R. Acho que o euro foi um erro, causou muitos danos, mas a política não é tão racional. De fato, o Reino Unido não foi vítima da crise do euro, embora tenha imposto a si mesmo muita austeridade, enquanto a Grécia e a Espanha foram forçadas a ela. Se você observar a crise política na Europa, alguns dos países que aumentaram a rejeição à democracia não faziam parte do euro, mas o euro desacreditou as elites europeias, as pessoas pararam de acreditar que os tecnocratas de Bruxelas sabiam o que estavam fazendo e, sob esse ponto de vista, acabou contribuindo para o Brexit.

P. A mudança climática continua um pouco subestimada como um risco para a economia.

R. É o problema mais importante, alguns dos principais manuais falam bastante disso, incluindo o meu. Temos dois problemas: um, ter um Partido Republicano que é negacionista, e o outro, a mudança climática. Se Deus quis criar um problema realmente difícil de combater antes de ocorrer uma catástrofe natural, esse problema é a mudança climática. É gradual e tende a ser invisível até que seja tarde demais. Avança de forma progressiva e cada vez que não agimos, piora. A questão é: quais países podem fazer esforços para resolvê-lo? Se tivéssemos uma liderança forte nos Estados Unidos, poderíamos ter adotado uma ação efetiva, mas, em vez disso, temos um Partido Republicano que nega o problema. Assim, é bastante assustador. As possibilidades de catástrofe são muito altas.

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