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A vingança da ferrugem: o voto de protesto capturado por Trump

Não, a metade do EUA que elegeu o Trump não é toda composta por idiotas, racistas, homofóbicos, machistas e assaltantes sexuais

Trump em Wisconsin, no "cinturão do ferrugem"
Trump em Wisconsin, no "cinturão do ferrugem" Matt Rourke (AP)

Ninguém celebrou mais o triunfo de Donald Trump nas prévias republicanas do que o establishment da esquerda americana. Parecia bom demais para ser verdade. Um bilionário excêntrico que passou boa parte de sua vida atuando em programas de reality TV e promovendo modelos em trajes de banho. Que faliu inúmeras vezes, levando milhares de funcionários ao desemprego. Que mente, xinga, insulta e insulta as pessoas sem qualquer pudor, que ameaça deportar milhões de imigrantes, querendo vetar todos os muçulmanos de entrar no país e chamando um povo inteiro de estupradores. Sua promessa bombástica de engrandecer o país, sem qualquer substância ou um plano de Governo, parecia uma propaganda para um produto de qualidade duvidosa, típico da marca Trump. Os líderes do Partido Democrata passaram toda a campanha presidencial abrindo uma garrafa de champagne depois da outra, comemorando cada tropeço de um candidato “dolorosamente despreparado para ser presidente", nas palavras de Barack Obama. Durante essa perpétua celebração da sua iminente vitória e evidente superioridade moral, a elite democrata não percebeu o fato mais importante na história americana do último meio século. Trump libertou da jaula o gigante que eles tinham manipulado, humilhado e abusado por mais de três décadas.

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Foram os avós e bisavós dos trabalhadores de Wisconsin, Michigan, Pensilvânia e Ohio que empregaram suor e muitas vezes sacrificaram o sangue para construir os sindicatos e a esquerda americana. Desde o New Deal da era Roosevelt, foram nestes trabalhadores que o Partido Democrata apostou para construir a máquina política mais robusta da história americana e dominar através dela, por décadas e décadas, a vida política do país. Em contrapartida, aos trabalhadores foram prometidos direitos, respeito e uma vida digna. Eles acreditaram no american dream e no Partido Democrata. Ao contrário dos agricultores racistas do Sul, o chamado "Cinturão da Ferrugem" não abandonou o Partido Democrata depois da desagregação promovida pelo partido dos anos 60. Mesmo com fortes valores conservadores, esses trabalhadores não se deixaram seduzir pelo discurso cada vez mais focado em religião do Partido Republicano. E mesmo depois que o NAFTA assinado pelo presidente Clinton começou a acelerar o fechamento definitivo de suas fábricas e a destruição das suas comunidades, continuaram votando nos democratas. Ficaram cada vez mais pobres. Com seus filhos obrigados a procurar emprego em outras regiões, se tornaram também menos, mais velhos e mais isolados. O flagelo das drogas tomou conta de muitos que não souberam lidar melhor com o seu desespero. E mesmo assim, a esperança de que o contrato social do passado continuasse vigorando levou eles a votar pelo primeiro presidente negro da história do país. Acreditaram no Obama e torceram pelo “Yes, we can!”

Coloque-se na posição de um dos poucos sortudos que ainda tem um emprego miserável numa fábrica de Michigan. Você ficaria empolgado com mais uma onda de liberalização?

Por décadas, o Cinturão da Ferrugem ficou cada vez mais pobre enquanto o país ficou cada vez mais rico. Não se trata de um exagero ou de uma medida relativa. Em Michigan, por exemplo, a família mediana ganhava 49.041 dólares por ano em 1984. Até 2015, este valor havia caído para 48.801dólares: 30 anos sem aumento. E isso enquanto o PIB per capita do país cresceu em mais de 70%. Quem foi que absorveu este 70% de crescimento? As elites urbanas das grandes cidades, que se beneficiaram com os lucros gigantescos das grandes corporações multinacionais e do mercado financeiro. Quando economistas defendem a abertura do comércio, o principal argumento é que a maior produtividade que vem da competição e especialização econômica gera um excedente que deixa o país mais rico. Alguns ganham e outros que perdem no curto prazo, mas no longo prazo todo mundo ganha: os que ganharam mais podem compensar os que perderam. Os que perderam podem se adaptar à nova realidade econômica. Mas, para o Cinturão da Ferrugem, décadas passaram e o longo prazo nunca chegou. Em vez disso, chegou o presidente Obama com o seu discurso focado em esperança. Uma vez reeleito, Obama defendeu fortemente o TPP, o acordo de livre-comércio mais ambicioso da história recente. A esperança deu lugar ao desespero. Coloque-se na posição de um dos poucos sortudos que ainda tem um emprego miserável numa fábrica de Michigan. Você ficaria empolgado com mais uma onda de liberalização?

Cada vez mais próximos aos interesses do Wall Street e dos grandes bancos que financiam suas campanhas eleitorais, o Partido Democrata abraçou desde o começo dos anos 90 um programa econômico fundamentalmente idêntico ao dos republicanos. A constatação de que as políticas econômicas dos democratas traíram os interesses dos trabalhadores já não é tão recente nos Estados Unidos. De fato, essa frustração diminuiu durante a recuperação econômica dos últimos anos, com o ressurgimento da indústria automóvel. Mesmo assim, o apoio para mudanças radicais na política econômica continua expressivo e ficou evidente durante a campanha presidencial.

Ferrenho adversário da Hillary Clinton nas prévias democratas, Bernie Sanders representa as alas mais progressistas da sociedade americana e certamente não propõe deportar imigrantes, assaltar sexualmente alguma mulher, ou discriminar negros – alguns pontos usados pela esquerda para caracterizar a mobilização popular em torno do Trump. Mas semelhante a Trump, Sanders denunciou incansavelmente as medidas econômicas responsáveis pelo colapso econômico e a devastação social das regiões do interior. Isso explica porque existe uma forte correlação entre a popularidade de Bernie Sanders e do Donald Trump nas mesmas regiões. Nunca antes na história das prévias americanas existiu um republicano contrário ao livre comércio e um democrata que se declarasse abertamente socialista. Sanders foi derrotado nas prévias, mas Trump prevaleceu e virou candidato. E, por conta disso, a fatia de simpatizantes de Bernie Sanders que acabou atraída pelo populismo de Trump decidiu a eleição. Não é descartável a hipótese de que, no lugar de Hillary, Bernie Sanders teria conseguido derrotar o candidato republicano.

Alienação e psicose coletiva

A tremenda sede de vingança contra as elites que Trump conseguiu aumentar até uma verdadeira psicose coletiva não tem suas origens exclusivamente na marginalização econômica. Contribuiu também um sentimento de alienação da base tradicional do Partido Democrata em relação a grupos mais novos da coligação progressista. Os democratas privilegiaram apelos para três grupos: os latinos, que estão crescendo rapidamente como porcentagem do eleitorado, os jovens progressistas dos grandes centros urbanos e a população negra, que foi decisiva para a dupla eleição do presidente Obama. Para atrair os latinos, Hillary escolheu um vice que poderia falar com eles em espanhol. Para os jovens, prometeu introduzir a gratuidade do ensino superior. Para os negros, prometeu combater o racismo e a violência da polícia. Mais uma vez, os trabalhadores do Cinturão da Ferrugem acabaram esquecidos. O discurso em que Hillary taxou as pessoas atraídas pelo discurso do Trump de “deploráveis” parece ter sido a gota que encheu o copo.

A elite intelectualizada do Partido Democrata tem um desafio cada vez maior para dialogar com os trabalhadores pobres, brancos e sem educação superior. Hillary não parou nem sequer uma vez no Estado de Wisconsin durante a campanha e viajou para Michigan somente uma vez, na véspera da votação: focar na mobilização de outros grupos era mais importante na lógica eleitoral. Mas, apesar da gigantesca infraestrutura de inteligência montada pela campanha da Hilary, essa estratégia falhou. O conhecido diretor e ativista de esquerda Michael Moore capturou melhor a dinâmica da eleição do que qualquer pesquisa ou analista político. Num documentário filmado em tempo recorde durante a campanha, Moore dissecou o sentimento de raiva nos antigos bastiões democratas do Cinturão da Ferrugem numa tentativa fracassada de neutralizar o potencial de rebeldia. O documentário revelou o grito primal de um eleitorado que os democratas exploraram sem escrúpulos por muito tempo. Nas palavras de Moore, um voto massivo em Trump significaria “the biggest fuck you in the history of humanity”, um xingamento merecido, uma palmada nos democratas. Moore estava buscando mostrar que um voto de protesto em Trump era longe de ser a solução, mas a sedução da vingança prevaleceu.

Ver no preconceito e na tolice as únicas razões para votar em Trump é o tipo de arrogância que explica a crise da esquerda em muitos lugares do mundo, inclusive no Brasil

Se os democratas americanos quiserem retornar ao poder daqui a quatro anos, deveriam evitar denegrir os eleitores de Trump e fazer, em vez disso, uma profunda autocrítica dos seus próprios erros e dos seus clichês de pensamento. Não, a metade do país que elegeu o Trump não é toda composta por idiotas, racistas, homofóbicos, machistas e assaltantes sexuais. Uma maioria o escolheu mesmo achando ele completamente despreparado para o cargo e não confiando no seu caráter, fato revelado de forma muito clara por todas as pesquisas de boca de urna. Ele não enganou quase ninguém. Defender que o preconceito e a tolice constituem as únicas razões que levaram as pessoas a votarem em Trump revela arrogância e preguiça intelectual. É exatamente o tipo de arrogância e autossuficiência que explica hoje em dia a crise da esquerda em muitos lugares do mundo, inclusive no Brasil. Ao não ser que queira ficar cada vez mais popular em Pinheiros e nos Jardins e rechaçada nas periferias, a esquerda precisa fazer um diagnóstico realista de suas derrotas, repensar o discurso e traçar novas estratégias. Ao se limitar ao seu echo chamber no Facebook ou comfort space de uma padaria vegana, a esquerda vem se desgastando entre os setores populares que esperam dos seus governantes medidas eficazes para conquistar uma vida mais digna.

A vitória de Trump é uma verdadeira tragédia para os Estados Unidos, para a democracia e para o mundo. Na medida em que o novo governo republicano conseguir adotar medidas econômicas populares que estimulem o crescimento no curto prazo, uma perspectiva surpreendente, mas que vem se cristalizando desde a sua eleição, o discurso de ódio contra minorias e outras nações poderá ganhar cada vez mais espaço. É exatamente este o caminho traçado pela Rússia de Putin, a Hungria do Orban ou as Filipinas do Duterte. Dentro da onda global de populismo misturado com nacionalismo e xenofobia, nenhum sistema democrático é imune, nem sequer o americano. As forças políticas democráticas, tanto da esquerda quanto da direita, precisam ter consciência das consequências dramáticas das suas falhas para corrigi-las antes que seja tarde demais.

Andrei Roman é doutourando em Ciência Política pela Universidade de Harvard e criador da plataforma Atlas Político.

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