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Investigação interna reconhece 175 vítimas de pedofilia por membros de ordem religiosa Católica

Marcial Maciel, líder da Congregação dos Legionários de Cristo, foi responsável por abusos de pelo menos 60 menores, segundo relatório da organização

João Paulo II abençoa Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, em 2004.
João Paulo II abençoa Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, em 2004.Tony Gentile (Reuters)

A Congregação dos Legionários de Cristo, um dos grandes movimentos do cristianismo romano, publicou seu relatório sobre os abusos sexuais de menores no seu seio, principalmente por parte de seu fundador, o sacerdote Marcial Maciel, três dias após o Papa ter ordenado a remoção do segredo pontifício sobre os pedófilos eclesiásticos. O documento, intitulado Radiografia de Oito Décadas para Erradicar o Abuso, indica que, desde 1941 até o momento, 175 menores foram vítimas de abusos sexuais cometidos por 33 sacerdotes da congregação. O número inclui pelo menos 60 menores abusados por Marcial Maciel, falecido em 2008. A maioria das vítimas: meninos entre 11 e 16 anos. Desses 33 sacerdotes, seis morreram, oito deixaram o sacerdócio e 18 continuam na congregação, mas afastados do tratamento pastoral dos menores – quatro deles com restrições ao ministério e com um plano de segurança; 14 foram obrigados a não exercer o ministério sacerdotal público. Entre os sacerdotes que abusaram, 14 também teriam sido vítimas de abuso na congregação.

Diz-se que Bento XVI decidiu abandonar o cargo ante a resistência da Cúria em eliminar os pedófilos do Vaticano. O principal entre eles, Marcial Maciel, fundador dos Legionários, sempre foi protegido por João Paulo II – que chegou a propô-lo como exemplo da juventude. Sabe-se agora que Maciel, já falecido, enchia de dinheiro os bolsos de alguns dos cardeais próximos do Papa, pois havia transformado sua congregação num império econômico, com colégios, universidades, agências de notícias e de viagens, entre outros empreendimentos.

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O escandaloso é que o Vaticano teve notícia da índole do fundador legionário em 1943 e que os jesuítas, com os quais Maciel estudou na Universidade de Comillas (Cantábria), o haviam expulsado do centro dois anos antes. Isso foi reconhecido em janeiro passado pelo prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada, o cardeal João Braz de Aviz. “Quem o acobertou era uma máfia, eles não eram a Igreja”, disse o cardeal à revista católica Vida Nueva. João Braz foi a Madri para o encerramento da assembleia geral da Confederação Espanhola de Religiosos (Confer). “Tenho a impressão de que as denúncias de abusos de menores aumentarão, porque estamos apenas no início. Faz 70 anos que acobertamos, e isso tem sido um grande erro”, afirmou. Também disse que o Vaticano tinha documentos desde 1943 sobre a pedofilia dos Legionários.

O relatório publicado agora pela congregação, obrigada pelo Vaticano a realizar uma profunda reforma interna, incluindo a remoção em seus estatutos de qualquer cláusula de secretismo, abrange toda a sua história, desde a sua fundação em 1941, com Maciel sendo apoiado e aplaudido pelo papa Pio XII e pelo ministro das Relações Exteriores da Espanha, o propagandista católico Alberto Martín-Artajo. Mexicano, Maciel havia chegado à Europa precedido da fama de santidade de seu tio-avô, o bispo Rafael Guízar y Valencia, perseguido no México e canonizado por Bento XVI. Os resultados da investigação vieram a público no mesmo dia em que o papa Francisco aceitou a renúncia do cardeal Angelo Sodano, de 92 anos, como decano do Colégio Cardenalício, figura-chave nos conclaves, e limitou o mandato desse cargo a cinco anos, renovável apenas uma vez através de um motu proprio.

O relatório divulgado neste sábado contém os resultados de um amplo estudo realizado durante seis meses por uma comissão interna, que examinou as acusações de abuso sexual de menores por parte dos sacerdotes, com estatísticas globais dos casos entre 1941 e 2019. Inclui um anexo com os passos dados para prevenção e geração de ambientes seguros implementados em âmbito mundial pela congregação desde 2015.

“Pudemos ver que qualquer passo de aproximação a uma vítima é um passo essencial para a justiça na verdade”, diz o relatório, após verificar e contrastar as denúncias que haviam sido escondidas ou ignoradas. “Durante o período do estudo, entramos em contato com 13 vítimas e entrevistamos de forma detalhada cerca de 40 membros da Congregação. É preciso jogar luz sobre o passado. Por mais doloroso que seja, [isso] é libertador e um fundamento indispensável para construir o futuro”, acrescenta o documento, antes de condenar e deplorar os abusos cometidos, assim como “aquelas práticas institucionais ou pessoais que possam ter favorecido ou propiciado qualquer forma de abuso ou revitimização”. Os dirigentes atuais dos Legionários, que dizem não ter relação com tão desastroso passado, esperam que a publicação do informe seja também para as vítimas um sinal do seu desejo de continuar dando passos no caminho de reconciliação com cada uma delas. A publicação do estudo vem na esteira do fim do secretismo, ordenado pelo Papa argentino, mas também porque os Legionários de Cristo estão preparando o chamado Capítulo Geral da Congregação, que será realizado em Roma a partir do próximo 20 de janeiro. Ali, a comissão encarregada do estudo apresentará as conclusões e recomendações.

O relatório e as estatísticas estão disponíveis no site ceroabusos.org, que oferece também um canal de escuta e denúncia. Com essa medida de transparência, os Legionários pretendem “continuar jogando luz sobre os abusos por parte de alguns membros ao longo de sua história, contribuir para a cura das vítimas e favorecer ambientes seguros que ofereçam todas as garantias possíveis para um futuro com zero abuso.”

O conhecimento dos escândalos de pedofilia no seio dos Legionários de Cristo, até então um dos grandes movimentos do novo catolicismo, levou o Vaticano a determinar, finalmente, a chamada “tolerância zero”, lema com o qual o cardeal alemão Joseph Ratzinger ganhou o pontificado. Não lhe deram atenção e ele acabou renunciando, um gesto sem precedentes em séculos.

O castigo a Marcial Maciel e sua organização foi rigoroso, mas chegou tarde porque tinham a proteção de João Paulo II e de vários membros da Cúria (Governo vaticano). No entanto, não se chegou a extinguir a Congregação, como pediam várias vítimas, inclusive algumas que chegaram a ter importantes cargos internos antes de decidirem denunciar. A investigação ordenada por Bento XVI logo após assumir o pontificado foi realizada por cinco cardeais e durou vários anos. Nunca foi publicada. Entre os investigadores escolhidos pelo Papa, estava o espanhol Ricardo Blázquez, atual presidente da Conferência Episcopal Espanhola.

Entre outras exigências, além da proscrição do fundador, os legionários se comprometeram a deixar de festejar as diversas efemérides de Maciel; teriam que deixar de chamá-lo “nosso pai” e ignorar seu nome em público; deveriam liminar de seus centros todas as fotos nas quais ele estivesse sozinho ou com João Paulo II; e deixariam de vender seus livros. Houve uma exceção em respeito à “liberdade pessoal”: quem desejasse conservar “de forma privada” alguma foto do fundador, ler seus textos ou escutar suas conferências poderia fazê-lo, mas discretamente.

Com esse longo processo de purgação e depuração, e eliminados os mais estreitos colaboradores de Maciel, o Vaticano autorizou há um ano as novas constituições da Congregação e deu a chancela canônica às congregadas e aos laicos consagrados do Regnum Christi “como sociedades de vida apostólica de direito pontifício”. Além disso, aceitou aprovar o Regnum Christi em seu conjunto como “uma federação formada e governada de forma colegiada entre os Legionários de Cristo, as consagradas e os laicos consagrados, com voto consultivo dos laicos, que se associarão individualmente à federação”.

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