“Não é superação, é treino”: como torcer na Paralimpíada sem preconceitos e clichês
Atleta e medalhista paralímpica Verônica Hipólito faz campanha nas redes sociais para que torcedores não sejam capacitistas ao comentar os Jogos Paralímpicos de Tóquio
“Manual da Paralimpíada: não olhe para a deficiência, olhe para a eficiência. Sem usar ‘que superação’ só por ver alguém sem perna, braço, cadeirante, cego/baixa visão ou com paralisia. A gente treina pra caramba para estar lá”. O desabado é da atleta brasileira Verônica Hipólito, velocista campeã mundial e medalhista paralímpica, cujo conselho publicado em uma rede social durante o encerramento dos Jogos Olímpicos de Tóquio chamou a atenção sobre como torcer ―sem cometer gafes nem destilar preconceitos― para os esportistas durante os Jogos Paralímpicos, que começam nesta terça-feira e seguem até 5 de setembro. O Brasil chega a esta edição da Paralimpíada como uma potência: há três edições o país fica entre os 10 maiores medalhistas e a meta deste ano é que os 260 atletas da delegação brasileira repitam o feito e tragam para casa a sonhada 100ª medalha de ouro de sua história. Portanto, torcer por um time tão vencedor não é difícil, mas algumas dicas são bem-vindas para que se evitem clichês inoportunos.
“Foi um desabafo mesmo. A Olimpíada deu uma boa viralizada, os atletas ganharam seguidores e vaquinhas. Isso é muito grande para a gente. Quando chega a Paralimpíada, dá uma esfriada. Quem permanece comentando sempre fala em ‘exemplo de superação’”, justifica Hipólito. “Pensa numa coisa que a gente odeia… e nunca ninguém vem perguntar para o atleta. Isso é capacitismo e eu não preciso ficar acusando o tempo todo”, reclama ela.
Capacitismo, como explica a própria atleta, é o preconceito que as pessoas com deficiência sofrem quando alguém diz, de forma explícita ou implícita, que elas não têm capacidade de fazer algo. É disso que os atletas paralímpicos reclamam quando ouvem de torcedores clichês como “exemplo de superação”, “se ele consegue, eu também consigo”, “eu não tenho nada e ainda reclamo”, entre outros. “Não é superação, é treino. A deficiência nada mais é do que uma característica. Eu já vi cadeirante passar em frente de igreja e ouvir: ‘vou orar para você melhorar’. Não queremos piedade de ninguém, queremos autonomia e inclusão”, afirma.
O debate é acentuado em ano de Paralimpíada, o auge do esporte de alto rendimento para atletas com deficiência. Mas não significa que a discussão tenha que ficar presa aos Jogos. “Falamos de racismo, machismo, LGBT+fobia, mas considero que o capacitismo é uma pauta deixada de lado”, opina Hipólito. “Esses dias ouvi que Paralimpíada é para atletas paralíticos. Ou que PcDs (pessoas com deficiência) são ‘portadores de necessidades especiais’. Minha única necessidade ‘especial’ é comer um hambúrguer todo dia”, descontrai. “O movimento paralímpico tem uma função educativa, porque falar dele também é falar do preconceito do ministro da Educação, filas e vagas preferenciais, educação inclusiva, mobilidade urbana. A partir do momento que ganhamos mais espaço na mídia, se entende mais sobre o esporte e ele recebe mais investimento. Se torna um ciclo que culmina numa sociedade com mais inclusão. Mas não é uma pauta para acontecer a cada quatro anos —o manual paralímpico também é um manual para a vida.”
A velocista de 24 anos entrou no esporte paralímpico aos 16, depois da retirada de um tumor no cérebro e um AVC que, dois anos antes, paralisaram o lado direito do seu corpo. O atletismo, que ela já conhecia desde criança, virou instrumento de reabilitação para voltar a andar. E logo depois já se transformou em conquistas. Verônica Hipólito foi campeã mundial dos 200 metros rasos em 2013, campeã pan-americana nos 100m, 200m e 400m rasos em 2015 e ganhou duas medalhas na Rio 2016: prata nos 100m e bronze nos 400m. Todas as conquistas foram na classe T38 do atletismo paralímpico. Mas depois da Paralimpíada do Rio, ela passou por uma série de dificuldades que prejudicaram sua continuidade no esporte. Retomou às competições em 2019, mas mudou da T38 para a T37, uma categoria para atletas com uma dificuldade motora maior. “Eu concordei com a minha reclassificação porque passei a sentir uma dificuldade muito maior no lado direito do meu corpo após essas cirurgias”, conta. Fora da competição em Tóquio, ela é uma das comentaristas dos Jogos no canal SporTV.
Entendendo a categorização das provas
A categorização das provas é outra especificidade dos Jogos Paralímpicos. Ao contrário do que acontece na Olimpíada, o Comitê Paralímpico Internacional (IPC) precisa abrigar deficientes físicos, visuais e intelectuais no mesmo esporte, ainda que eles não possam competir entre si. A classificação funcional, desta forma, permite que atletas com membro superior amputado corram entre si no atletismo, mas não contra atletas sem membro inferior, por exemplo. Funciona como a separação entre pesos leve, médio e pesado do judô ou boxe, por exemplo. O atletismo de velocidade tem categorias do T11 ao T64, utilizando a letra T pela palavra inglesa track (pista). Já as provas de campo, como arremesso e lançamento, usam o F de field (campo), indo da F11 a F64. Caso semelhante acontece na natação, que tem classes do S1 ao S14 (S de swimming), no ciclismo (H1 a H4 para bicicletas adaptadas, T1 e T2 para triciclos e C1 a C5 para bicicletas convencionais) e na maioria dos esportes paralímpicos, cada um com suas regras.
“O critério é provar através da ciência que atletas com a mesma funcionalidade podem competir sem que um tenha vantagem sobre o outro. No atletismo, o Comitê consegue juntar deficiências bem semelhantes ao expandir o número de classes. Na natação é um pouco mais polêmico, porque um atleta sem perna pode competir com um sem braço. É por serem polêmicas que as classificações são revisadas frequentemente”, pontua a atleta. A natação paralímpica abrange deficiências motoras nas categorias S1 a S10, visuais de S11 a S13 e intelectuais na S14. São 14 especificidades na natação contra 54 no atletismo, por exemplo, o que torna as categorias dos nadadores mais abrangentes entre as deficiências.
Um exemplo concreto de classificação que suscitou questionamentos na comunidade desportiva na natação é o caso do brasileiro Daniel Dias, um dos maiores atletas paralímpicos da atualidade. Competindo na categoria S5, o nadador conquistou 24 medalhas paralímpicas, 14 delas de ouro. No entanto, uma mudança de critérios do IPC em 2019 trouxe esportistas com menos dificuldades motoras que o brasileiro para a sua categoria. Isso fez com que o competidor perdesse cinco recordes mundiais e diminui suas chances de medalha em Tóquio 2020, ainda que Dias continue como um dos favoritos ao pódio. O atleta chegou a dizer que estava “triste” com a nova classificação funcional e que os critérios adotados no meio do ciclo paralímpico “tiram a credibilidade” do esporte.
As regras, entretanto, pouco devem influenciar os torcedores e fãs da competição paralímpica. “Ninguém assistiu às Olimpíadas sabendo todas as regras do surfe ou do skate. A galera simplesmente curtiu, e a Paralimpíada é a mesma coisa”, reforçou. Para a velocista, essa é a dica principal: torcer sem se preocupar com critérios, sem ser preconceituoso e sem exagerar no “coitadismo”. “Se divirtam, sequem os adversários, deem risadas. A deficiência é só uma característica. Existem pessoas gordas e magras, altas e baixas, com mão e sem mão, e não é mais importante do que isso”, concluiu. Também vale lembrar que desde 2011 o Brasil adota o padrão internacional e mudou a grafia para Paraolimpíada para Paralimpíada.
Em Tóquio, o Brasil aposta no atletismo como seu carro-chefe para alcançar a meta de se manter entre os top 10 da competição. Na Rio 2016, 33 das 72 medalhas vieram de lá, incluindo 8 de 14 ouros. “E Paris 2024 é logo ali. Já estou treinando para chegar no meu melhor daqui três anos”, garantiu Hipólito.
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