_
_
_
_
_

Daniel Dias, 14 vezes campeão paralímpico: “Imagina o reconhecimento se eu fosse atleta olímpico?”

Dono de 100 medalhas entre Paralimpíadas, Mundiais e Parapanamericanos, o ex-nadador fala ao EL PAÍS sobre preconceito contra pessoas com deficiência, a carreira vitoriosa e o desejo de seguir lutando pelo desenvolvimento do esporte

Daniel Dias na Paralimpíada de Londres, em 2012, quando ganhou seis medalhas de ouro.
Daniel Dias na Paralimpíada de Londres, em 2012, quando ganhou seis medalhas de ouro.Buda Mendes/CPB

Aos 33 anos, Daniel Dias é o maior nome da história do esporte paralímpico brasileiro. Aliás, seus feitos na natação não se comparam ao de nenhum outro esportista do Brasil, com ou sem deficiência. São 27 medalhas em Paralimpíadas: 14 ouros, 7 pratas e 6 bronzes. Outros 40 pódios em Mundiais, 31 deles dourados. Em Jogos Parapan-americanos, disputou 33 provas e ganhou todas. Mesmo assim, os louros não lhe satisfazem plenamente, porque faz parte de uma categoria de atletas paralímpicos que, quando comparados aos convencionais, ficam em segundo plano. “Se eu fosse um atleta olímpico, você imagina o reconhecimento que eu teria?”, diz durante entrevista por videoconferência ao EL PAÍS.

Dias fala cerca de dois meses após se aposentar das piscinas. Foram 17 anos de carreira encerrados na Paralimpíada de Tóquio 2020, onde aumentou sua lista com três medalhas de bronze, nas provas de 100 metros livre, 200 metros livre e revezamento 4x50 metros livre misto. A competição foi sua pior em conquistas, apesar de suas marcas pessoais não terem piorado. O rendimento foi afetado por uma polêmica reclassificação de deficiências na natação, feita pelo Comitê Paralímpico Internacional (IPC).

A natação paralímpica tem 14 categorias funcionais para abranger todas as PcDs (pessoas com deficiência). Atletas com deficiências motoras, como Daniel Dias, competem nas categorias de S1 a S10. Quanto maior o número, menos dificuldades motoras. Desde o início da carreira, o brasileiro disputa provas na classe S5. Uma mudança de critérios em 2019 passou a incluir atletas da S6 (com menos dificuldades motoras) na categoria dele. O ex-atleta admite que a mudança esteve entre as razões que o levaram a deixar as piscinas. Agora, pretende se dedicar à luta contra o capacitismo. Além de compor o conselho internacional de atletas, assumiu o cargo de secretário de Esportes de Atibaia, no interior de São Paulo, onde vive com a família.

Pergunta. Você já disse que passar mais tempo com a família foi o principal motivo da aposentadoria. Mas a reclassificação da sua categoria também influenciou nessa decisão?

Resposta. A decisão foi baseada na questão da família. Mas, quando você decide algo como isso, você pondera muitos pontos. Com toda a certeza a reclassificação foi um desses pontos. A gente não viu ela como um processo claro e objetivo, mas sim uma confusão muito grande. Cada pessoa explica a reclassificação de um jeito diferente, e você vê que os próprios atletas não estão entendendo. Então ela fez parte da minha decisão. Não porque eu não vou ganhar mais medalha, mas porque batalhei tanto por esse esporte, briguei para representar meu país por tanto tempo, e vem uma classificação na qual os atletas foram remanejados sem uma explicação lógica, sem um estudo específico, e isso te desanima porque dediquei minha vida ao esporte. Do meu ponto de vista, a natação paralímpica perdeu a credibilidade. Melhorei os meus tempos e não ganhei medalhas, como explico isso? Continuei em grande nível, mas passei a competir com atletas de uma categoria acima. Isso também pesou para me aposentar.

P. Que tipo de deficiências foram igualadas com a reclassificação?

R. É mais fácil tentar explicar com meu caso: eu sempre fui da classe S5, porque nasci com má formação congênita. Meu braço não vai crescer, eu só vou evoluir com treinamento. Algumas pessoas com deficiências, como paralisia cerebral, conseguem melhorar sua condição com a prática de exercícios físicos. Da mesma forma, outros têm condições degenerativas que pioram com o tempo. Esses atletas poderiam passar por uma reclassificação. Não é o caso das nossas categorias, onde a evolução tem a ver com o treinamento, não com melhoria ou piora da deficiência. Por isso, se eu continuo na S5, teoricamente os da S6 deveriam continuar na S6. E não existe uma explicação lógica hoje para alguns da S6 terem passado para a S5. Para que entendam minha revolta, competi contra atletas cuja deficiência não regrediu. Vejo que o grande problema da natação paralímpica hoje é a classificação, que está muito subjetiva.

P. Baseado nisso, é possível dizer que seu resultado em Tóquio (três bronzes) foi melhor que o esperado?

R. A expectativa era brigar por uma medalha só nos 100 metros livre. Fora isso, já estaria satisfeito melhorando as marcas. Eu sabia que ia ser difícil, por isso foi surpreendente tudo que vivi lá, ter conquistado as três medalhas e ter fechado a carreira com 100 medalhas em campeonatos mundiais, Parapan-americanos e Paralimpíadas.

P. Como encara esses feitos, agora como ex-atleta?

R. Ainda não tive tempo de sentar e analisar friamente ou emocionalmente. O menino que começou aos 16 anos, lá em 2004, não chegaria nem perto de imaginar tudo que eu conquistei. Isso já dá uma ideia. E fico muito feliz por não terem conquistas só do Daniel, mas para o esporte brasileiro, para o movimento paralímpico e para as pessoas com deficiência. Porque representamos milhões de PcDs e abrirmos portas para elas.

Daniel com uma das medalhas de bronze que conquistou em Tóquio 2020.
Daniel com uma das medalhas de bronze que conquistou em Tóquio 2020.ALE CABRAL/CPB

P. Por ter sido uma Paralimpíada com engajamento nas redes, recordes do Brasil e transmissões mais inclusivas na televisão, Tóquio 2020 teve um destaque nesse sentido?

R. Essa preocupação com a transmissão mais acessível foi algo que fez as pessoas passarem a pensar mais nisso. Vejo que Tóquio 2020 teve esse marco de quebrar o preconceito, da luta contra o capacitismo, e acima de tudo mostrar o valor da pessoa com deficiência, tirando a ideia do coitadismo. Acho que foi a virada da chavinha, para que vejam a deficiência de outra maneira. Os recordes foram importantes, mas foi muito além disso. Pessoalmente, foi a minha pior Paralimpíada em termos de medalhas, mas também foi a coroação do que foi minha carreira.

P. Desde Sidney 2000, os resultados do Brasil nas Paralimpíadas são melhores que nas Olimpíadas. Na sua opinião, por que o país é uma potência paralímpica?

R. Queria falar primeiro que estou muito feliz com a evolução da natação paralímpica, com o Bil (Gabriel Bandeira), Gabrielzinho (Araújo), Maria Carolina (Santiago), Talisson (Glock), Wendell (Bellarmino), entre outros. Eles me dão uma tranquilidade para parar porque sei que vão dar continuidade. No esporte em geral, é um trabalho que o Comitê Paralímpico Brasileiro vem fazendo. Ele mostra que, quando aumenta o investimento, o resultado vem. Temos um grande legado da Rio 2016, que é o centro de treinamento paralímpico em São Paulo. Ele consegue atender todas as modalidades paralímpicas, e o atleta não precisa sair mais de casa para treinar numa estrutura melhor que muitos campeonatos mundiais. Antes eu precisava buscar essa estrutura fora do país. Então você colhe frutos quando faz o investimento chegar onde é necessário.

P. O Brasil não é um país conhecido por oferecer muitas alternativas para pessoas com deficiência. Assim, o esporte se torna uma das poucas ferramentas para que uma PcD seja incluída na sociedade. Você acha que isso colabora para o ótimo desempenho do país no esporte paralímpico?

R. Acredito que sim. Muitas pessoas que têm um filho com deficiência descobrem a Paralimpíada quando assistem na TV. Eu entrei para a natação assim, assistindo aos Jogos de Atenas 2004. Nesse ponto, eles vêm uma saída para “vencer na vida”. E nem sempre a pessoa tem o sonho de seguir carreira no esporte, o que não deixa de ser importante. Mas a procura é muito maior porque estamos muito aquém em acessibilidade e preconceito, que é falta de conhecimento. As pessoas não conhecem a realidade dos PcDs e, por isso, formam os preconceitos.

P. Você acha que o principal caminho na luta contra o capacitismo passa por combater essa falta de informação?

R. Sim. Se eu fosse um atleta olímpico e tivesse ganho 27 medalhas, você imagina o reconhecimento que eu teria? É importante fazer essa reflexão. Não que eu não tenha reconhecimento, mas esse exercício é necessário para entender que existe um preconceito contra o movimento paralímpico. A gente precisa quebrar isso dessa maneira: divulgando o movimento. A sociedade precisa passar a conhecer, a consumir, a entender.

Daniel se preparando para disputar a última prova da carreira, em Tóquio.
Daniel se preparando para disputar a última prova da carreira, em Tóquio.Miriam Jeske/CPB

P. De que forma você vai se manter ligado ao esporte paralímpico?

R. Consegui me eleger com uma boa votação e hoje faço parte do conselho internacional de atletas. Quis entrar justamente para brigar pela questão da reclassificação, porque não é só um problema da natação. É um problema geral do esporte paralímpico cuja evolução precisa acompanhar a tecnologia. Isso não aconteceu e é triste. Então quis entrar para ser um porta-voz dos atletas porque só nós sabemos o que passamos.

P. E a vida de aposentado? Já deu para passar o tempo que queria com a família?

R. Os compromissos ainda não permitiram (risos). Pelo menos estou todos os dias em casa. Mas os compromissos são divertidos, estou gostando do que estou vivendo. Um exemplo simples é poder ter feriados... Estou achando incrível isso de emendar feriados. Então se tem um feriado na quinta, você também folga na sexta? Isso existe? (risos). São pequenas coisas, mas que fazem toda a diferença. Nós treinamos todos os dias, é uma vida desgastante, então agora dá para aproveitar a vida de ex-nadador —não vou falar aposentado porque parece que estou velho.

P. Algum outro plano a curto prazo?

R. Eu assumi a Secretaria de Esportes de Atibaia (cidade a 60 quilômetros de São Paulo), onde vivo com a minha família. É uma das coisas que me fazem não conseguir parar. Sempre soube que não ia conseguir ficar longe e quis agarrar esse desafio de contribuir com o esporte. E é bom fazê-lo de uma maneira geral, seja no alto rendimento, na parte social ou no lazer para a sociedade. Não tenho nenhum plano específico, mas o que eu pretendo é fazer a diferença e ajudar. Batalhar pela inclusão. Acredito que o esporte pode transformar vidas, porque transformou a minha. Quero somar no movimento paralímpico para que ele possa cada dia mais evoluir e ter credibilidade.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_