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Paralimpíada de Tóquio ensinou como contar aquilo que não se pode ver ou ouvir

Além do movimento para educar as pessoas a assistirem sem preconceitos, divulgação dos Jogos no Brasil destacou pessoas com deficiência nos comentários e contou com narrações mais inclusivas

Jessica defende bola em jogo da seleção brasileira de goalball.
Jessica defende bola em jogo da seleção brasileira de goalball.Wander Roberto/CPB
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“Sou uma mulher branca, de cabelos escuros, encaracolados e óculos. Visto uma camisa azul do SporTV com mangas longas. Estou à esquerda na imagem da sua televisão, ao lado da comentarista Carla da Mata”. Assim a narradora Natália Lara, dos canais esportivos da Globo, iniciou a transmissão da primeira partida do Brasil no goalball, esporte desenvolvido especificamente para deficientes visuais, durante os Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020. A audiodescrição física é uma das novidades apresentadas na divulgação das competições com o objetivo de trazer a inclusão no momento em que pessoas com deficiência são as estrelas do jogo. Assim como o combate ao capacitismo, a preocupação com a acessibilidade é outra lição paralímpica que promete ir para além do esporte.

Lara afirma que já havia trabalhado com audiodescrição antes e que, quando foi escalada pra transmitir o goalball, sabia que grande parte da audiência seria de deficientes visuais. Por isso, iniciou sua participação com o relato das próprias características, assim como adotou o mesmo critério detalhado durante a partida.

Além da audiodescrição física, o telespectador mais acostumado ao esporte convencional percebe outras adaptações feitas na cobertura paralímpica. Os narradores buscam esmiuçar mais o que acontece nos jogos, descrevendo posição de atletas e uniformes. Na final do goalball masculino, por exemplo, o narrador Luiz Prota ressaltou que o Brasil estava vestindo amarelo, enquanto a China trajava um uniforme vermelho e preto. Narrações como a de Natália na estreia e a de Prota na final, por diversos momentos, descreveram o jogador pegando a bola com a mão direita, arremessando na diagonal e fazendo ela quicar por cima dos adversários antes de entrar no gol. Um detalhamento que parece exagerado para quem enxerga, mas é fundamental para um deficiente visual —e foi padronizado na maioria dos outros esportes.

“Houve um processo de preparação e também de contribuição para que as transmissões sejam mais cada vez mais inclusivas. A importância disso é enorme. É importante se comunicar com todas as camadas da sociedade”, justifica Natália Lara. “A gente às vezes acha que na televisão a imagem já cumpre o papel de descrição, mas nem todo mundo consegue se utilizar deste recurso”, conclui. Outras ferramentas foram usadas nas redes sociais do mesmo canal. No Instagram, todos os vídeos postados contam agora com uma legenda que transcreve o que é dito pelo narrador, auxiliando deficientes auditivos. Se é uma foto, ela conta com uma descrição da imagem no texto da própria foto.

Joana Thimóteo, diretora de grandes eventos do esporte da Globo, resume a intenção: “Acreditamos que o esporte hoje precisa discutir, de forma inclusiva, os comportamentos da nossa sociedade. E os Jogos Paralímpicos têm uma enorme importância nessa discussão”. Ela relata que os jornalistas da casa tiveram palestras feitas por um comitê da diversidade durante a preparação, com o objetivo de aprender mais sobre a classe PcD (pessoas com deficiência). A Globo, ao lado da TV Brasil, é a detentora dos direitos de transmissão das Paralimpíadas no Brasil, e priorizou a programação dos Jogos no SporTV 2, seu segundo maior canal de esportes na tv fechada. A situação é diferente da Olimpíada, quando toda a programação ao vivo foi dividida entre mais de uma dezena de canais fechados e mobilizou um horário diário na noite e madrugada da TV Globo.

Mesmo mais escondida que os Jogos Olímpicos, a Paralimpíada já chama mais a atenção do as últimas edições. “É a primeira vez que eu vejo uma preocupação com esse tipo de conteúdo em português”, afirma Geovanna Moura, 22 anos e atleta da seleção feminina de goalball. Geovanna descobriu uma gravidez em março deste ano, no meio dos treinos, e precisou ficar na Paraíba assistindo a suas companheiras ao invés de competir em Tóquio. Ela conta que os fãs de esporte paralímpico que são deficientes visuais só conseguem acompanhar as modalidades fora dos Jogos através do canal da International Blind Sports Federation (IBSA, ou Federação Internacional de Esportes para Cegos em português). No entanto, apesar de acessíveis aos cegos, todas as transmissões são feitas em inglês, o que é um obstáculo para muitos telespectadores. “Já melhorou bastante desde a Rio 2016. Vimos o futebol de 5 passar na Globo. Temos mais envolvimento e mais visibilidade agora”, comemora ela.

Geovanna enxergava perfeitamente até os 14 anos, mas, com catarata congênita, sua capacidade visual piora a cada ano. Ela assiste à televisão com dificuldade e, por isso, acha essencial a narração inclusiva. Segundo ela, quando a seleção feminina de goalball venceu a China, a transmissão descreveu o treinador do Brasil pulando em cima das jogadoras na comemoração pela vitória. “São detalhes que tornam tudo muito mais legal para nós. Isso nos deixa próximo do time e mantém vivo o sonho de quem quer chegar ao patamar mais alto do esporte paralímpico”, afirma a atleta. Daniel Dias é um exemplo de campeão que descobriu as Paralimpíadas assistindo na televisão. Outro aspecto que destaca a importância da acessibilidade, para que mais pessoas —inclusive potenciais atletas— acompanhem a competição.

A narradora Natália Lara ao lado da comentarista de goalball, Carla da Mata.
A narradora Natália Lara ao lado da comentarista de goalball, Carla da Mata.Reprodução Sportv

Além da acessibilidade, representatividade e anticapacitismo

A inclusão dos conteúdos é apenas um dos debates que envolve a pauta de deficientes, que ganha destaque com os Jogos Paralímpicos. Antes de começar, a atleta Verônica Hipólito já fazia campanhas nas redes sociais contra o capacitismo, para pedir uma torcida sem preconceitos e sem clichês. “Não é superação, é treino”, resumiu. Hipólito trabalhou durante as competições como comentarista do atletismo no SporTV e levou o mesmo discurso para o ar todos os dias, assim como o colega Clodoaldo Silva, ex-nadador e hexacampeão paralímpico. “Tratamos o esporte paralímpico como deve ser tratado. Não com coitadismo, mas como campeões. Ficamos muito felizes por isso”, declarou Clodoaldo ao vivo no último dia de provas na natação, nesta sexta-feira (3).

Da mesma forma, a representatividade é importante. Verônica e Clodoaldo são exemplos de PcDs que ganharam espaço como comentaristas de suas modalidades. Não só porque as especificidades do esporte paralímpico, como as diversas classes e regras diferentes, exigem o didatismo ao vivo de quem vivenciou aquilo, mas também porque é importante ter uma pessoa com essas características na televisão. Ádria Santos, tetracampeã paralímpica no atletismo e deficiente visual, foi outra comentarista atuante na tv aberta. “As pessoas nunca imaginaram que uma cega poderia ser comentarista, pois para se comentar algo é necessário enxergar. No entanto, pessoas cegas, muitas vezes, enxergam o que pessoas com visão não veem. Eu estar ali diz que nós podemos ocupar esse espaço. É ímpar uma mulher como eu, negra, cega e campeã paralímpica, estar nesse lugar”, diz.

“A mídia tem um papel importante para a quebra de paradigmas. Uma cobertura mais acessível, com descrição, linguagem de libras e a participação de pessoas com deficiência é super positivo”, continua Ádria. “Somos 24,5% de pessoas com deficiência no Brasil. Então temos que estar nas transmissões, nas novelas e fazer parte dos profissionais que fazem a produção de conteúdo. É muito importante esse primeiro passo, mas ainda temos muita coisa para mudar. Transmissões com mais acessibilidade devem ocorrer sempre”, finaliza.

A partir da inclusão nas Paralimpíadas, o desejo é para que outros conteúdos além da competição se tornem acessíveis para todos. E que haja mais representatividade e menos capacitismo dentro e fora das disputas esportivas. “Espero que continuem assim, acredito que o avanço é questão de tempo. Quem transmite já tem a noção de que é necessário. Imagina o Galvão Bueno abrindo uma transmissão com uma autodescrição?”, vislumbra Geovanna. Natália Lara concorda: “Sempre podemos pensar em como a televisão pode ser mais inclusiva. É um movimento interessante para pensarmos e planejarmos”. Thimóteo diz que, como parte principal na transmissão de grandes eventos da maior emissora do país, trabalha para que esse tipo de debate não fique preso a estas duas semanas. “Estamos atentos e dispostos a evoluir e a tornar o esporte cada vez mais plural e inclusivo”, promete.

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