De Moscou 1980 à Copa América 2021, como o esporte abandonou o boicote como arma política
Os escassos gestos críticos contra a Copa do Mundo do próximo ano nos afastam daquela época, a Guerra Fria, em que as potências levavam suas diferenças para o campo de jogo
James Walker teve seu sonho roubado. Em julho de 1980, o atleta norte-americano de 23 anos era esperado em Moscou para participar da prova olímpica de 400 metros com barreiras, o grande evento para o qual se preparava havia mais de dois anos. Não precisou renovar o passaporte: ficou nos Estados Unidos e acabou competindo na Filadélfia, em um simulacro de Olimpíada alternativa batizado de Liberty Bell Classic. Walker conquistou a medalha de ouro com um tempo respeitável, 48 segundos e 6 décimos, mas mal comemorou. Sabia que estava participando de uma farsa geopolítica, de um triste sucedâneo. Oito dias depois, um atleta da República Democrática Alemã, um tal Volker Beck, levou o ouro em Moscou com uma marca dois décimos pior que a de James. “Por que não fomos àquela Olimpíada?”, perguntou este herói anônimo do atletismo 40 anos depois do boicote norte-americano aos Jogos de Moscou. “Suponho que foi por alguma razão moral ou política de peso.”
A razão de peso que Walker diz ignorar é que a União Soviética tinha invadido o Afeganistão em dezembro de 1979. Em resposta ao envio de tropas do Pacto de Varsóvia para a Ásia Central, os Estados Unidos adotaram uma série de medidas de represália, que incluíam o boicote aos Jogos, também secundado por nações como Noruega, República Federal da Alemanha, Japão, Argentina, Turquia e República Popular da China. Quatro anos depois, em 1984, a União Soviética e seus aliados retribuíram ao não comparecer às Olimpíadas de Los Angeles.
Os boicotes esportivos em grande escala tornaram-se uma arma na reta final da Guerra Fria, mas já eram praticados em meados da década de sessenta. São uma forma de interação extrema entre política e esporte que, em certas ocasiões, funcionaram também como ferramenta eficaz de mudança social. Por exemplo, o regime racista da África do Sul foi objeto de um bloqueio quase universal que incluía a proibição de organizar e participar de eventos esportivos internacionais e que o próprio Nelson Mandela acabou considerando uma das causas diretas da transição para uma verdadeira democracia que aconteceu no país em 1992.
Nos últimos meses, ativistas, grupos de torcedores e veículos de comunicação das democracias ocidentais começaram a levantar com insistência a necessidade de um boicote ético e humanitário à Copa do Mundo de Futebol do Qatar, que está marcada para novembro e dezembro de 2022. Alguns deles esgrimiram um dado bastante marcante, divulgado pelo jornal The Guardian no dia 23 de fevereiro: 6.500 trabalhadores imigrantes, a maioria procedente de nações como Índia, Paquistão, Bangladesh e Nepal, morreram no país árabe desde que a organização da Copa do Mundo foi concedida à monarquia do Golfo Pérsico, faz agora dez anos. Os jogadores da seleção alemã apresentaram-se abraçados em linha, cada um vestindo uma camiseta com uma letra maiúscula para compor as palavras “direitos humanos” antes da partida contra a Islândia.
O The Guardian se interessou pelo assunto depois da morte de um cidadão britânico no Qatar que trabalhava na construção dos novos estádios. A cifra não foi obtida com uma investigação independente no terreno, mas sim consultando e extrapolando fontes oficiais qatarianas. Para Toni Padilla, editor de esportes do jornal Ara e membro fundador da revista Panenka, “é muito improvável que aconteça um boicote significativo à Copa do Mundo do Qatar”. As razões para fazê-lo existem e seriam, em sua opinião, “muito sólidas e absolutamente legítimas”; entretanto, “não existe agora, ao contrário do que aconteceu na década de oitenta, nenhuma superpotência mundial interessada em fazer uso do boicote como ferramenta de represália política”. Os esforços voluntariosos e desordenados de agrupações como o coletivo de torcedores alemães ProFans, que pedem às suas seleções que não compareçam ao Qatar, servirão, em qualquer caso, “para que os jogadores vistam uma camiseta reivindicativa”. “O Qatar é uma ditadura feudal que tem um histórico humanitário desastroso”, argumenta Padilla, “e isso é dificilmente discutível, para além de controvérsias sobre se a morte em massa de trabalhadores imigrantes tem a ver ou não com as condições de segurança no trabalho nos canteiros de obras dos estádios”. No entanto, o nível ético é muito baixo. “Países como Rússia ou China organizaram recentemente Olimpíadas e Copas do Mundo sem fazer mais do que concessões cosméticas aos supostos valores da comunidade democrática internacional”, lembra Padilla.
O emirado é neste momento um dos países mais ricos do planeta, “e está injetando quintais métricos de dinheiro novo no mundo do esporte, no qual encontrou uma forma de se legitimar e limpar sua imagem”. Jogadores de futebol de elite como o holandês Geoginio Wijnadum já se pronunciaram. Querem ir ao Qatar. Não estão dispostos a que um excesso de zelo humanitário lhes roube seu sonho. Outros, como o ilerdense [natural de Lérida, na Espanha] Roberto Martínez, treinador da Bélgica, acredita que não se pode renunciar a um evento de tamanha importância e que, de qualquer forma, é melhor ir e contribuir para que aconteçam intercâmbios culturais no país que o abram para o mundo. Padilla vê nisso argumentos “entre ingênuos, voluntaristas e cínicos” que escondem uma realidade: “O esporte está politizado de raiz e sem remédio, talvez porque, já em 1906, as Olimpíadas deixaram de ser eventos amadores e se tornaram competições entre nações”. O Qatar mereceria um boicote se o esporte levasse a sério por um instante seu suposto papel de ferramenta de mudança social a serviço de valores universais. E, como adverte Padilla: “Isso não vai acontecer”.
A seleção brasileira de futebol também quase foi protagonista de um boicote à Copa América de 2021, após Argentina e Colômbia se recusarem a sediar o torneio e o Governo de Jair Bolsonaro aceitar realizar a competição. Insatisfeitos com a realização do evento durante a pandemia —e com o Brasil com um número gigantesco de mortos e casos da covid-19―, jogadores e comissão técnica externaram seu descontentamento com a decisão dos cartolas, mas desistiram de última hora de boicotar a Copa América.