Os fenômenos olímpicos do boxe que precisaram vender comida para se manter na pandemia
Esquiva e Yamaguchi quebraram o tabu de 44 anos sem medalhas brasileiras nas Olimpíadas de 2012 e se tornaram o retrato do descaso do país com seus atletas, cenário agravado durante a crise sanitária
Olimpíadas, Londres, 2012. Em menos de uma semana, os irmãos Yamaguchi e Esquiva Falcão quebraram o tabu de 44 anos sem medalhas brasileiras no boxe e levaram, respectivamente, um bronze e uma prata nas categorias peso médio e meio-pesado. Um marco que impulsionaria os dois irmãos à profissionalização na luta, ao estrelato mundial e ao hall de ídolos do esporte brasileiro, cumprindo o sonho do pai e treinador. Um avanço no tempo nos leva para a pandemia, Espírito Santo, 2021. Yamaguchi e Esquiva, os dois com mais de 30 anos, ainda estão na luta, mas precisam improvisar treinos e novas fontes de renda para sobreviver à crise econômica causada pelo novo coronavírus. Um quase vendeu sua medalha e trocou a luva de boxe pela de motoboy para entregar mini pizzas. O outro, que ainda sobrevive com o dinheiro que ganhou lutando em 2019, vende marmitas fitness pelo bairro. Tudo isso enquanto ainda tentam voltar aos ringues.
Yamaguchi e Esquiva tinham, respectivamente, 15 e 13 anos quando se enfrentaram pela primeira vez. Escolhidos entre os 18 filhos do seu pai, o renomado lutador de vale-tudo Touro Moreno, para seguir o legado da família no esporte, os irmãos Falcão começaram a carreira num ringue improvisado no quintal da família, em Vitória-ES, onde também treinavam socando um pé de bananeira. A ideia de Moreno era treiná-los para o MMA, a mais endinheirada das categorias, mas os dois não desprenderam do boxe. Quem ganhou a primeira luta? Hoje separados por 30 quilômetros e um contrato de patrocínio, cada um tem uma resposta. “Eu ganhei”, afirma o mais velho. “Meu pai me deu a vitória”, retruca o caçula.
Do ponto de vista esportivo, o mais novo teve mais sucesso na carreira. Esquiva, 31, não só alcançou um resultado melhor que o irmão nos Jogos de Londres (prata contra bronze), como também manteve um cartel invicto como profissional: 28 vitórias em 28 lutas, sendo 20 por nocaute, em três pesos diferentes. “Disputar uma final olímpica foi o melhor momento da minha carreira”, garante ele, “mas eu só não sou campeão mundial ainda porque o Brasil não tem tradição no boxe. A mídia não acredita, não transmite lutas, não nos dá reconhecimento, e isso nos atrapalha para negociar lutas com os melhores e ter chances de ganhar um cinturão”, reclama o morador de Vila Velha, a 14 quilômetros de Vitória, capital capixaba.
O boxe profissional tem quatro entidades principais, e cada uma delas dá um cinturão —um título mundial— por peso. Apesar de invicto e bem ranqueado nas quatro entidades, Esquiva não teve a chance de enfrentar um dos americanos, britânicos ou mexicanos, de países onde o boxe é mais popular, que dominam a maioria das categorias. Segundo ele, a expectativa é de que apareça um “grande duelo” ainda nesse ano, se a pandemia não atrapalhar.
Sua última luta foi no mês de fevereiro. Em 2020, por conta da pandemia, só conseguiu subir ao ringue duas vezes, o que dificultou sua vida financeira. “Minha renda é formada pelo que ganho por luta, e guardo esse dinheiro até a próxima. Com a pandemia, diminuíram as lutas e os valores”, relata Esquiva, que é pai de Juan, de 7 anos, e Luiza, de 4. Para ter o que chama de “renda extra”, a primeira ideia foi vender sua medalha olímpica, a grande conquista da vida que colocou a leilão por 50.000 dólares. Desistiu quando viu que a entrega de mini pizzas, feitas por sua esposa desde o início da pandemia, sustentaria a família. “No começo eu tinha muito medo por ser de família humilde e não ter muita coisa em casa. Entre ter meu filho passando fome e vender a medalha, eu vendo ela”, admitiu.
Esquiva viralizou nas redes sociais ao divulgar seu trabalho como motoboy das mini pizzas em Vila Velha. “Isso chocou os fãs, porque é difÍcil você ver um medalhista olímpico vendendo mini pizza. Mas deu certo, virou um emprego para a minha esposa, que continua até hoje”. Esquiva pontua com ‘até hoje’ porque, depois de espalhar sua história, conseguiu patrocínio das lojas Havan e da casa de apostas KTO, que o permitem não só ter um conforto a mais na renda como também bancar os treinos em uma academia na cidade —antes sem condições, o pugilista invicto treinava com um saco de pancadas que tem em casa. “Deixo de ficar preocupado com a conta do mês que vem e posso investir no meu treinamento”, comemora.
Até agora, o irmão mais velho não teve a mesma sorte. Yamaguchi Falcão, 33, mora em Serra, a 40 quilômetros de Vitória e a mesma distância de Vila Velha. O último salário que recebeu de sua profissão veio da última luta que fez, um empate em dezembro de 2019. Depois, o vencimento do seu visto para os EUA e a pandemia fizeram os compromissos —e o dinheiro— desaparecerem em 2020, bem como qualquer sinal de patrocínio.
Os dois se profissionalizaram no mesmo ano (2014), mas o Yamaguchi tem 10 lutas a menos no seu cartel. São 16 vitórias, um empate e uma derrota, sendo que os dois piores resultados vieram nas últimas duas vezes que lutou. “Mas isso não me traz um peso maior para voltar”, promete. “Minha derrota foi muito contestada e doeu muito no começo. Só que me fez um atleta mais focado, mais determinado, e aprendi a lidar com ela. Sei que estou no caminho certo e fazendo meu melhor”, afirma. “Acho que o Esquiva esqueceu do irmão dele”, diz num tom sincero. “Cheguei a conversar com ele quando surgiu essa chance da Havan, ele falou que ia ver se também poderiam me patrocinar, mas não me deu mais a oportunidade”. Yamaguchi relembra que, para as Olimpíadas de 2012, ele subiu uma categoria no peso para que Esquiva pudesse conseguir a vaga olímpica sem concorrer com o irmão, já que ambos lutavam no mesmo peso. “Acho que ele deveria lembrar mais disso”, conclui. Esquiva confirma que, quando viajou para Santa Catarina para fechar o patrocínio com a Havan, sugeriu que a loja também patrocinasse o irmão. “É natural, todo mundo lembra dele quando falam de mim. Mas não sou eu que escolho quem a empresa vai patrocinar”, retruca. “Eu coloquei a cara para bater e consegui. Disse para ele que, conseguindo coisas boas para mim, vou puxar coisas boas para ele também”, finalizou.
Assim como o caçula, Yamaguchi apostou no ramo alimentício durante a pandemia: passou a vender marmitas fitness, feitas pela esposa Juliana e pela cunhada Aline. É com o pequeno comércio que vem sustentando a casa, onde também mora seu filho de dois anos, enquanto improvisa treinos no quintal e corridas na rua para continuar ativo. No seu calendário, está a estadia de um mês em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, onde treina e se hospeda na academia de um amigo. “Cada um corre da maneira que pode. Meu irmão quis vender medalha, vender pizza, e deu certo. Eu jamais venderia minha medalha. Ela é de bronze mas tem um sabor maior que ouro”, completa.
As Olimpíadas não estão mais no horizonte dos dois, que apostam numa geração nova para trazer “ao menos duas medalhas em Tóquio”, mas o cinturão mundial ainda é objetivo para Yamaguchi e Esquiva. Com a promessa de ter “três grandes lutas” em um ano, o mais novo espera que alguma TV brasileira compre os direitos de transmissão de seu próximo combate, “mas a gente sabe que o Brasil é o país do futebol masculino, onde até o feminino tem que brigar pelo espaço”, comenta. Já para o maior, a esperança é que surja alguma luta, qualquer uma, ainda em 2021. “Preciso voltar a minha rotina neste ano, preciso voltar a lutar. Quando aparecer uma oportunidade, vou engolir com tudo”, promete.
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