Apogeu e queda do U2, a maior banda do mundo

‘Achtung baby’, o disco decisivo para a carreira dos irlandeses, completa 30 anos. Reinventou o rock, catapultou o grupo e fortaleceu seu prestígio. Mas foi também seu último grande álbum. Traçamos uma cronologia dessa decadência

Adam Clayton, The Edge, Bono e Larry Mullen Jr. – ou seja, o U2 inteiro – numa foto do começo da carreira.Aaron Rapoport (Getty)

Tudo o que você sabe está errado (“everything you know is wrong”). Um dos slogans mais populares da grandiosa turnê Zoo TV (1992-93) aparecia pela primeira vez em outubro de 1991 no provocador videoclipe de The fly. Aquela canção – sombria, rítmica, áspera e repleta de inteligente ironia – rompia radicalmente com o som e a imagem que o U2 havia cultivado durante a década anterior. Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. se erigiam como a banda de rock mais importante do mundo, um status que tinham alcançado em 1987 graças ao seu quinto álbum, The Joshua tree. Aqueles quatro jovens dublinenses enchiam a cada noite os maiores estádios do planeta, despertavam um ardor religioso entre as massas e, num grau acima de Bruce Springsteen, encarnavam o bastião que havia devolvido a autenticidade ao grande rock em cinemascope, dando-lhe de quebra um plus de compromisso humanitário em uma época tão truculenta como os anos oitenta. Mas eles, atarefados e tomados por inseguranças, não estavam vendo a menor graça. Seu projeto seguinte, o documentário e álbum duplo Rattle and hum, voltou-se contra a banda. O que queriam vender como uma homenagem à sua descoberta das raízes norte-americanas do rock era tudo, menos humilde. A crítica começava a virar as costas para eles e a usar de forma recorrente termos como “megalomaníaco” e “messiânico” para se referir ao quarteto.

O U2 entrou em crise na década de 1990. O marco disso foi um show na sala Point Depot, da sua Dublin natal, como parte de um show de final de ano e de década que foi transmitido ao vivo por rádio e TV para o mundo todo. De forma muito simbólica, eles deixavam de ser a banda com chapéus de caubói, como em Rattle and hum, para dar as boas vindas a uma Europa com nova roupagem que surgia após a queda do Muro de Berlim.

Assim, distraídos e relativamente cansados de si mesmos, chegaram ao estúdio Hansa, em Berlim, um lugar de ressonâncias míticas onde David Bowie e Iggy Pop tinham gravado. Perseguiam o mito da reinvenção a partir de uma situação-limite: ou se renovavam, ou se dissolviam.

As sessões foram traumáticas até que surgiu One, a canção que, além de simbolizar a união reforçada daqueles quatro caras numa Alemanha reunificada, congraçava seu passado e seu futuro. Achtung baby introduzia em seu som a eletrônica e o ritmo, um troço sexual e sombrio, com as melhores letras de Bono, e mudava o paradigma a ponto de marcar o caminho do que as bandas de sucesso deveriam fazer para continuar sendo influentes. Em um momento de conflito, com a vulnerabilidade à flor da pele, o U2 se saiu com o maior sucesso da sua carreira. Tanto é que até seus maiores detratores acabaram admitindo que havia ali algo de interessante.

Bono, vocalista de U2, durante a emblemática turnê ‘Zoo TV”, na década de 1990. Gert Van Kesten (cordon press)

Tudo foi ainda mais longe sobre o palco. A turnê Zoo TV foi uma grande brincadeira pós-moderna que lhes permitiu rirem um pouco de si mesmos, acrescentar um efeito teatral ao seu espetáculo e se antecipar à nova sociedade da informação, com a internet ainda nas fraldas, esmagando o público com mensagens a toda velocidade e em várias telas, inventando duetos em videoconferência com Lou Reed e ligando ao vivo para a Casa Branca. Para abrir seus shows, escolheram nomes como Pixies, Public Enemy, The Velvet Underground, Ramones, The Sugarcubes e Björk, PJ Harvey e Pearl Jam, prova de que queriam adotar também o papel de apóstolos do alternativo. Em plena turnê, fizeram algo ainda mais insólito: gravaram e lançaram um disco mais radical e arriscado, do qual só foram capazes de tocar ao vivo algumas poucas faixas, e pouquíssimas vezes. Zooropa, lado B oficioso de Achtung baby, merece ser resgatado por achados como, por exemplo, The wanderer, uma parábola eletrônica pós-apocalíptica cantada por Johnny Cash. O U2, portanto, havia se tornado o porta-estandarte do risco criativo como símbolo de sucesso global – algo que, talvez, só os Beatles tivessem conseguido anteriormente com tal intensidade –, mas àquela altura já havia quem apontasse que o rei estava nu.

No penúltimo capítulo de O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, memórias dos últimos dias de Charles Bukowski, o escritor, sem citar nomes – embora seja fácil comprovar –, escreve sobre a noite em que Bono o convidou para o seu show no estádio dos Dodgers. “Aquilo vibrava, mas as vibrações duravam pouco. Suponho que as letras não eram ruins, se desse para entendê-las. Provavelmente falassem de Causas, Decências, Amor encontrado e perdido etc.. As pessoas precisam disso: estar contra o establishment, contra os pais, contra alguma coisa. Mas um grupo de sucesso e milionário como esse, e independentemente do que dissesse, ERA O ESTABLISHMENT. Depois, após um momento, o cantor gritou: ‘Este show é dedicado a Linda e Charles Bukowski!’. E 25.000 pessoas aclamaram como se soubessem quem éramos. É para dar risada.”

O U2 nunca mais voltou a ter aquela relevância como banda na vanguarda do seu tempo, ditando a pauta. A inspiração não voltou a aflorar, e as decisões equivocadas começaram a se acumular até transformá-lo em um grupo que desperta tanto receio como admiração. Esta é uma cronologia do seu declínio em alguns quantos marcos infelizes.

1995

Hold me, thrill me, kiss me, kill me, gravado para a trilha sonora de Batman forever, é seu primeiro single insosso desde Two hearts beat as one (1983). Lançaram um álbum semiexperimental sob o nome de Passengers, com Brian Eno como quinto integrante, e rapidamente esquecido. “Há uma tênue linha entre a música interessante e a autocomplacência. Nós a cruzamos neste disco”, admitiria Larry Mullen no livro U2 by U2.

1997

Sua ambiciosa nova turnê já está fechada, mas seu álbum Pop não vai chegar a tempo. Parece que não sabem o que querem: adiam seu lançamento várias vezes; algumas canções tentam ir numa direção mais eletrônica e kitsch, e em outras acabam recuando para um pop-rock meloso claramente demarcado. Ainda por cima, Bono está perdendo a voz. A turnê Popmart foge do controle. Montagem mastodôntica para grandes estádios, tentando ironizar a sociedade de consumo sem ter consciência de que, na verdade, a glorifica. Introduzem um limão mecânico gigante que não funciona muito bem: mais de uma vez, a banda fica presa dentro dele. Pela primeira vez em anos, alguns shows não lotam. Em Barcelona, são vaiados quando surpreendem com um número de karaokê com Macarena, da dupla Los del Río.

O cantor Bono fala na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, em 2008. EFE

1999

Bono se reúne com o papa João Paulo II em sua turnê de visitas a líderes mundiais como embaixador do Jubileu 2000, projeto destinado a acabar com a dívida externa dos países do Terceiro Mundo. Põe-lhe seus óculos escuros e depois declara que “é o papa mais funky que já existiu”.

2000

Bono assina seu primeiro e último roteiro cinematográfico: Million dollar hotel, dirigido por seu amigo Wim Wenders. Colhe as críticas mais demolidoras já obtidas pelo cineasta alemão, e até o protagonista, Mel Gibson, se atreve a afirmar numa entrevista que o filme é “mais chato que bunda de cachorro”. Até eles pareciam estar de acordo: “Há coisas que você não pode deixar para trás. É como o professor universitário que não sabe dançar. No fundo, não éramos tão superficiais como pretendíamos”, declararia Bono em U2 by U2. Seu álbum All that you can’t leave behind é saudado pelos fãs como uma volta às antigas essências, mas com um caráter mais comercial e complacente. Entram na dinâmica do “voltamos a ser menos do mesmo”, que também acabaria envolvendo outros grupos da sua geração, como R.E.M. e Depeche Mode. Viajam a Madri para a cerimônia dos Prêmios Amigo e interpretam seu novo single, Beautiful day, em semiplayback. São os grandes astros da festa junto com os Backstreet Boys, Christina Aguilera e Estopa, que minutos depois tocaria no Círculo de Bellas Artes numa festa privada da BMG-Ariola. Este repórter avista ali a banda metendo-se a toda velocidade no camarim, acompanhada de um séquito em que figura Marta Botia, da dupla Ella Baila Sola.

2002

Sua atuação no Superbowl, grande final da temporada do futebol americano, se torna uma homenagem às vitimas do 11 de Setembro e aos Estados Unidos. Bono inicia sua interpretação de Where the streets have no name gritando “América!”, e a encerra mostrando as faixas e estrelas que leva no lado de trás do casaco, tocando o teto como manipulador de emoções. Para trás ficaram os tempos em que o cantor agitava uma bandeira branca e dizia que em todas as demais só via cor de sangue.

2004

How to dismantle an atomic bomb afunda ainda mais na linha do rock épico-sentimental que pretende agradar a todos os públicos. Assinam um acordo com a Apple e lançam um exclusivo modelo de iPod acompanhado de uma campanha em que Bono sai cantando Vertigo por todos os lados e em todas as telas possíveis. No documentário From the sky down (2011), o vocalista declararia que o quarteto tinha começado no punk, que aos 16 anos tinham ido ver o The Clash em Dublin, e chegou uma hora em que perceberam que haviam virado o inimigo que queriam combater. Isso contrariava aquilo pelo que quiseram lutar em Achtung baby. Agora, sim, eles eram claramente o inimigo.

2006

A empresa U2 se transfere para a Holanda a fim de pagar menos impostos, e o escândalo chega ao Parlamento irlandês. Os membros do grupo tentam justificar a manobra com argumentos tão pouco convincentes quanto alegar que seu negócio é global e que qualquer companhia sempre tenta minimizar sua carga fiscal.

2008

Assinam um contrato de 12 anos com a produtora multinacional Live Nation, que passa a ter o controle sobre grande parte do produto, a gestão da venda de ingressos e seu merchandising. Nas letras miúdas – algo que só se descobrirá em 2013 – consta que seu empresário, Paul McGuinness, o homem que os descobriu em 1978 e poderia ser considerado o quinto U2, deveria ser afastado.

2009

Lançam No line on the horizon, início de sua trilogia de álbuns mais tristes, que continuará com Songs of innocence em 2014 e Songs of experience em 2017. Apesar da fanfarra promocional que cerca seus lançamentos, de nenhum deles saiu qualquer grande sucesso.

2009-2011

A turnê 360 Tour bate recordes, tanto de arrecadação global como de dimensões de palco, embora os dados numéricos não signifiquem saúde artística. O projeto mais megalomaníaco da sua carreira é muita parafernália e pouco conteúdo: os fãs comparecem, basicamente, para ouvir seus velhos sucessos em versões desvalorizadas por todos os anos transcorridos.

The Edge, guitarrista do U2, atua com Matt Bellamy, do Muse, no Festival de Glastonbury de 2010. Danny North

2011

O U2 toca em Glastonbury. É sua primeira vez num festival desde 1985, e sua estreia no evento britânico. Em condições normais, deveria ser um show triunfal de grandes sucessos, mas a proliferação de cartazes pedindo que paguem seus impostos ofusca o show, numa atuação que soa pouco convincente e motiva mais pena que entusiasmo.

2014

Para não ficar atrás de outras megaestrelas que estão lançando seus discos de surpresa ou divulgando-os diretamente nas redes (Radiohead, Bowie, Beyoncé), eles decidem oferecer seu álbum Songs of innocence de presente no iTunes… mas sem pedir permissão prévia aos usuários. Os arquivos são baixados automaticamente em suas bibliotecas, e a maioria, em vez de comemorar, protesta veementemente, porque, além de não ter dado seu consentimento, quer eliminar esse lixo eletrônico, mas não há como. Diante da enxurrada de protestos, a Apple se vê obrigada a desenvolver uma ferramenta para apagá-lo. O primeiro álbum-spam da história continua sendo citado hoje em dia como exemplo de estratégia de marketing completamente equivocada.

2017

É anunciada a participação da banda na faixa XXX, do álbum Damn, de Kendrick Lamar. Os fãs do rapper protestam, ao mesmo tempo em que aplaudem a colaboração de Rihanna em outra das canções. Também acontece a primeira turnê nostálgica da carreira do U2, comemorando o 30º aniversário de The Joshua tree. Parte de seus seguidores comemora, porque a banda decide interpretar aquele álbum inteiro, e redescobre aquilo que melhor sabia fazer. Mas também há quem acabe se entediando com a sequência anticlimática do show. Pior ainda: em sua turnê seguinte, a banda decide fazer o contrário e não toca nem um só tema desse álbum.

O U2 na casa alugada pela banda em Londres, em 1979. Foto: Getty

2021

Sua última novidade discográfica é We are the people, tema oficial da Eurocopa de futebol, interpretada por Bono e The Edge junto ao DJ e produtor do EDM Martin Garrix. The Edge plagia a si mesmo, e a canção é tão brega que ultrapassa o paródico. Se no começo do milênio o Coldplay era saudado como o aspirante a assumir o trono do U2, aqui se reconfirma a teoria de que o U2 virou uma imitação de si mesmo.

Mais informações

Arquivado Em