Os tesouros perdidos de Belchior
Depois de serem encontradas sete músicas inéditas do cantor e compositor no Arquivo Nacional, Fagner, coautor de duas das canções, afirma ao EL PAÍS que irá gravá-las
O que eu posso dizer / sobre as coisas mortas / do maravilhoso lugar / Tudo isso você sabe / Tudo isso você sabe. Esses são os versos iniciais de Alazão, uma composição que veio à luz nos últimos dias e que se soma à lista de uma das parcerias mais importantes da música popular brasileira, a de Antônio Carlos Gomes Belchior (Sobral, Ceará, 1946 – Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, 2017) e Raimundo Fagner (Orós, 71 anos). “Eu sabia que a gente tinha feito mais coisa, s...
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O que eu posso dizer / sobre as coisas mortas / do maravilhoso lugar / Tudo isso você sabe / Tudo isso você sabe. Esses são os versos iniciais de Alazão, uma composição que veio à luz nos últimos dias e que se soma à lista de uma das parcerias mais importantes da música popular brasileira, a de Antônio Carlos Gomes Belchior (Sobral, Ceará, 1946 – Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, 2017) e Raimundo Fagner (Orós, 71 anos). “Eu sabia que a gente tinha feito mais coisa, só não lembrava exatamente o quê. Quero gravar essas músicas”, afirma Fagner, sem hesitar, do outro lado do telefone, ao atender o EL PAÍS. Além de Alazão, escrita pelos dois parceiros com Fausto Nilo (outro prolífico compositor cearense), Posto em sossego é mais uma canção de coautoria da dupla. Ambas estão entre as sete músicas inéditas de Belchior encontradas no Arquivo Nacional.
Foi nesse acervo digital (cujo acesso é público e gratuito) que o jornalista e pesquisador musical Renato Vieira achou também as letras de Fim do Mundo, Baião de Dois Vinte e Dois, Adivinha, Outras constelações e Bip... Bip..., que foram enviadas, entre 1971 e 1979, para a Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão que analisava as produções artísticas durante a ditadura militar. Vieira, cuja relação com Belchior remonta à infância —quando ouvia com seu pai todos os discos do cearense—, pesquisa a obra do músico desde 2013 e já reeditou 11 de seus discos. “Estou sempre atrás de pistas artísticas dele, para preencher as lacunas de seu trabalho. Quando me deparei com essas músicas, a sensação foi de ganhar uma Copa do Mundo!”, conta à reportagem.
O pesquisador teve que conter o entusiasmo, no entanto, para confirmar o ineditismo de seus achados. Ele também encontrou, por exemplo, o registro de uma canção chamada Ladainha do medo, um título até então desconhecido. Mas bastou uma olhada mais atenta para perceber que se tratava de outro título para Pequeno mapa do tempo, lançada em 1977, um ano depois de Belchior se consagrar com o álbum Alucinação —que Vieira define como “o adeus ao sonho hippie”.
As sete músicas inéditas não foram censuradas pela ditadura, mas o pesquisador não encontrou nenhum registro fonográfico delas. “Tenho umas mil fitas cassete aqui em casa, mas não lembro de termos gravado mesmo, não”, confirma Fagner. Vieira enumera algumas hipóteses para que isso tenha acontecido: considerando as dificuldades típicas do início de carreira, pode ser que a gravadora tenha rejeitado o material; além disso, os discos na época eram de 10 faixas e, geralmente, os músicos mandavam 14 opções para o órgão de censura para “ter uma margem”. Outra possibilidade é que o próprio Belchior tenha considerado que não deveria gravá-las naquele momento, por não combinarem com seu momento artístico. “Ele concebia um álbum como obra de arte, todos os seus discos são muito conceituais. Alucinação é o maior exemplo disso”, afirma o pesquisador.
Vieira disse que não tem planos do que fazer com seu achado, apenas reivindicar a “importância da preservação da memória e de seus pesquisadores no país”. De tudo o que encontrou, deixou-lhe especialmente feliz o achado de mais duas composições feitas em parceria entre Belchior e Fagner, os dois maiores nomes da cena setentista que ficou conhecida como o pessoal do Ceará. O pesquisador lamenta que, nos últimos anos, e principalmente após a morte de Belchior, em 2017, as famosas desavenças entre ambos —Fagner chegou a dizer que o colega foi “a pessoa que mais fez bullying com ele— tenham eclipsado a importância de sua obra. “As pessoas focam muito nas tretas, mas essa parceria rendeu canções que foram gravadas por Wilson Simonal, Elis Regina, Roberto Carlos, grandes nomes da nossa música. Eu adoraria ver o Fagner fazendo um disco disso.”
A milhares de quilômetros de distância, o cantor e compositor lembra com saudosismo do período em que compuseram juntos. “Lamento muito a gente não ter tido uma aproximação maior depois, porque tínhamos muita química. Desde Mucuripe, nossa primeira música, eu tinha uma identidade e uma intimidade enorme com as palavras dele”, diz Fagner. Ele rememora também, com uma risada, quando, em 1998, gravando seu disco Amigos e canções, Belchior lhe telefonou querendo participar da produção. “Eu disse a ele: ‘Você não me chama para os seus e quer que eu te chame para o meu’.”
Fagner não descarta que letras e músicas de outras parcerias dos dois ainda estejam por ser encontradas. Não existe uma obra organizada de Belchior, um catálogo para consultar quantas músicas ele fez ou quantas foram gravadas. “Em se tratando de Belchior, tudo é muito possível”, resume Vieira.
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