Belchior foi “embora sorrindo, sem ligar para nada”
O mais literário dos compositores brasileiros, o trovador do Ceará sabia tudo a respeito das nossas dores e inquietações
O primeiro grande porre, no balneário do Caldas, em Barbalha (CE), foi sob efeito do disco “Alucinação” (1976). O vômito inaugural tinha um motivo, além da garrafa de aguardente Kariri com K: a estranheza diante da primeira dor de amor. Muitos amores depois, na conquista ou na perdição, lá estava o bigode também na vitrola. Belchior foi o cara que sempre cantou os fracassos e os triunfos desses rapazes latino-americanos sem dinheiro no bolso e vindos do interior.
O trovador do Ceará também embalou os roqueiros da metrópole e os corações selvagens dos subúrbios. Não por acaso, o comentarista Walter Casagrande (TV Globo), em plena decisão do campeonato paulista, deixou Ponte Preta x Corinthians de lado para dizer o quanto Belchior foi importante para traduzir as inquietações iniciais da sua geração a partir dos anos 1970.
Em diálogo com Beatles, Cego Aderaldo, Godard, Baudelaire, Dante, os Dylan (Bob e Thomas), Torquato Neto, Mário Faustino, Jorge de Lima, Albert Camus, Drummond, Roberto Carlos, Luiz Gonzaga e com o avesso de Caetano Veloso –“nada é divino, nada é maravilhoso!”-, o cearense soube cantar as nossas dores naqueles momentos em que não sabemos direito diagnosticá-las. Só sabemos que deveras sentimos. Saca aquela melancolia do domingo à tarde?
Momentos em que só nos resta tomar um trago e levar a agulha para riscar de novo este angustiado “Coração Selvagem” no vinil: “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão/ O meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver/ E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza...”
No primeiro exílio, viagem ao redor do meu quarto de pensão da esquina da rua das Ninfas com rua do Progresso, no Hellcife, lá de novo estava Belchior, no começo dos 1980. “Minha rede branca/ Meu cachorro ligeiro/ Sertão, olha o Concorde/ Que vem vindo do estrangeiro/ O fim do termo "saudade"/ Como o charme brasileiro/ De alguém sozinho a cismar...”
No primeiro punhal de amor traído, no destino das inevitáveis partidas e na sensação de estranheza ou estrangeirismo, sempre haverá uma balada de Belchior. Ninguém interpretou melhor no Brasil essa permanente canção do exílio. O cearense é antes de tudo um cigano. O gênio de Sobral foi antes de tudo um exilado.
No inferno com Roberto
Sempre errante, cantou assim, em uma desconhecida canção do disco “Paraíso” (1982): “Um dia você me falou, em Andaluzia e em Valladolid/ Granada fica além do mar, na Espanha/ Molhou em meu vinho seu pão/ E também me falou em coisas do Brasil/ O FMI, Tom, poeta tombado na guerra civil...”
Falamos da faixa “E que tudo mais vá para o céu”, um diálogo-ruído com o inferno do rei Roberto. Na mesma música, o cara trata de uma certa dor do poeta Drummond e da asa negra da graúna alencarina. Ninguém celebrou mais a literatura brasileira em uma vida & obra musical do que Belchior. Nem mesmo Caetano, outro chegado nas citações das coisas que aprendeu nos livros.
Ainda com a agulha na mesma faixa do vinil, escuto um coro grego que diz assim: “Vá embora poeta maldito!/ O teu tempo maldito também já terminou”.
No que o trovador do Ceará responde: “E eu fui embora sorrindo, sem ligar pra nada;/ como vou ligar para essas coisas/ quando eu tenho a alma apaixonada? (...) “E eu quero mandar para o alto/ O que eles pensam em mandar para o beleléu/ E que tudo mais vá para o céu”.
Xico Sá, escritor e jornalista, é um dos autores do livro coletivo “Para Belchior com amor” (ed. Miragem, 2016).
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