Peter Brown: “Pior que esquecer a história é distorcê-la para avivar o ressentimento”

Com 36 anos, demonstrou em ‘O mundo da Antiguidade Tardia’ que a tese da decadência de Roma era falsa. Para muitos, é o maior historiador vivo em língua inglesa. Falamos com ele em sua casa em Princeton sobre sua trajetória, o abandono das ciências humanas e a tendência política de manipular o passado para incutir o medo

O historiador irlandês Peter Brown em sua residência em Princeton, New Jersey (EUA), em 29 de abril.Joana Toro
Mais informações
O primeiro perdão de López Obrador aos povos maias
Dois séculos de história e literatura queimados na Cidade do Cabo
Calígula, na verdade, não era tão mau

O gosto pela astronomia que Peter Brown (Dublin, 85 anos) desenvolveu quando criança foi um presságio da tarefa que o consagraria como historiador: o afã de esquadrinhar na escuridão os pontos de luz que definem a Antiguidade tardia (200-700 depois de Cristo), esse período durante o qual ocorreu o colapso de Roma, ganharam forma as religiões do livro e o cristianismo foi se estabelecendo na Europa. Um período que ganhou status acadêmico graças, precisamente, aos seus estudos.

A reedição em espanhol de O mundo da Antiguidade Tardia, uma de suas obras magnas, é uma oportunidade de redescobrir não só essa época erroneamente considerada sombria e seus tentadores paralelos com a atualidade, como também de rever a carreira do professor emérito de Princeton que antes lecionou em Oxford, sua alma mater, até 1975, do titã capaz de se rebelar contra Edward Gibbon, cuja tese da ruptura —a bem-sucedida, mas pouco justificada ideia de decadência e queda do Império Romano— teve uma releitura radical no conceito de transformação do Brown.

Venerado por gerações de historiadores, a jornalista o encontra em sua residência de Princeton suscita uma ansiedade pertinente. Assim como tentar descobrir que presente deseja alguém que tem tudo, o que se deve perguntar a um erudito, a um sábio de fama internacional? Tanta riqueza de conhecimento impõe respeito. Mas a cortesia do professor, que aguarda a chegada do táxi para me acompanhar até o interior de sua casa —luminosa e plácida, com torres de livros, porcelanas, miniaturas e cortinas de cretone—, desfaz qualquer acanhamento.

Na soleira, uma mesinha auxiliar coberta de azulejos que reproduzem os motivos florais de Iznik, a cerâmica do período otomano, faz o visitante valorizar sua beleza enquanto pronuncia o topônimo. “Iznik!” e, abracadabra, predispõe ao diálogo. A primeira referência, graças à cerâmica, é a Turquia, um país que Brown e sua esposa, Betsy, conhecem muito bem, como parada obrigatória para quem estudou Bizâncio em todas as suas formas. A Turquia voltará reiteradamente à conversa. “Qual sua opinião sobre Erdogan? Como vê a situação do país?”, pergunta logo o professor, em um exercício de maiêutica. Betsy lembra que Peter estudou turco, “esse idioma tão bonito, com um som lindo”, comenta ele com satisfação. Sobre seu vasto dom de línguas ele falará, entre divertido e modesto, mais tarde. “Agora estou aprendendo etíope”, conta, sem dar importância a isso. “Mas não o moderno, o antigo.”

Para um historiador total como Brown, herdeiro em fôlego de Fernand Braudel e discípulo de Arnaldo Momigliano, que atualidade tem um livro escrito há décadas? “Este livro é de 1971. Obviamente, minhas inquietações mudaram. A razão para me dedicar ao que agora chamamos de Antiguidade tardia era o desejo de estudar uma sociedade que tinha conservado suas raízes no mundo antigo, com o latim e o grego como línguas dominantes, mas ao mesmo tempo tinha começado a mudar. Era o estudo da mudança em uma sociedade inusualmente resistente. Costumávamos descartar esse período por ser um período de ruptura total. Não gostávamos de nada que víamos dele”, lembra Brown sobre a época que ele reabilitou epistemologicamente.

O professor Brown na biblioteca de sua casa em Princeton, em abrilJoana Toro

“Essa foi minha principal motivação: entender a natureza exata de certas crises, como as mudanças no Governo do Império Romano nos séculos III e IV. Queria descobrir se tinham sido desastrosas ou, na verdade, mudanças de ajuste da evolução; um equilíbrio entre a continuidade e a descontinuidade, a fragilidade e a resistência. Um exemplo: o surgimento de novos estilos de vida aristocrática nas províncias do Império Romano. Devo muito à arqueologia espanhola, aos grandes mosaicos de lugares como Carranque, que conheci naquela época. Achados que nos diziam: ei, as coisas não desmoronaram, mudaram, o foco já não está nas urbes”, a quintessência do mapa-múndi romano junto com sua malha viária espalhada como uma teia de aranha entre metrópoles.

“Acredito que uma das principais preocupações no campo da Antiguidade tardia era minar a noção fácil das invasões bárbaras”, acrescenta. A tentação de ver uma transcrição desse fenômeno para o da imigração irregular é fácil, tanto para um discurso tão raso como o dos populistas a granel como para esse outro, mais rebuscado, que propõe a perversa teoria da substituição. “Se você estiver olhando constantemente para uma imagem falsa do passado, procurando o reflexo de sua própria imagem, isso só o levará pelo caminho do racismo, do obscurantismo. Da xenofobia. Um bom exemplo são as invasões bárbaras. Todo mundo está ciente de que há problemas na Europa por causa da imigração em massa, mas é um terrível abuso histórico tratar um como uma repetição do outro”, explica Brown. Além disso, acrescenta, “o islã jihadista tragicamente protagonista hoje não tem nada a ver com o do profeta Maomé, com o islã de 300 anos atrás, são totalmente diferentes”.

Seu primeiro livro foi, no entanto, uma biografia de santo Agostinho, o norte-africano que o erudito destronou da santidade intitulando sua obra simplesmente como Augustine of Hippo: A Biography (lançada em português como Santo Agostinho: Uma Biografia). “Uma figura muito latina, um homem que representava um cristianismo imensamente opressivo. Lembro-me das críticas em espanhol ao meu ensaio; de como os europeus, principalmente os de origem católica, ainda consideravam Agostinho como parte de seu próprio mundo.”

Por intercessão intelectual do santo, Brown superou o etnocentrismo —ou seja, o eurocentrismo tradicional, que considera a civilização clássica como única fonte do Ocidente— e soube olhar em volta, outra de suas grandes conquistas como historiador. “Teria sido muito fácil continuar estudando só o cristianismo, mas me deparei com as descobertas da arqueologia, aprendi siríaco e hebraico e abri uma área cuja cultura chegava então até as cidades gregas da costa do Egeu, como Éfeso. Continuavam sendo cidades impressionantes, mas foram sendo criadas outras grandes obras, como Santa Sofia em Istambul.”

Portanto, prossegue ele sem abandonar o uso do plural de modéstia e com um levíssimo gaguejo ocasional, imperceptível, “vimos que havia um mundo lá fora e que não era possível escrever sobre ele como se tivéssemos de fechar as cortinas do Império Romano; era uma vida nova para o Império Romano, inclusive o profeta Maomé e o islã surgiram dessa cultura, não vieram do espaço exterior. Parte das raízes da Europa não está apenas na Europa. Também está no Oriente Médio e no sul do Mediterrâneo. Parte da riqueza da cultura europeia é, precisamente, sua abertura ao mundo. Em Santa Sofia, nos escritos dos Padres do Deserto...”.

Detalhe da biblioteca do Peter Brown em sua casa em Princeton. Joana Toro (JOANA TORO)

Brown é generoso na hora de destacar a contribuição de seus discípulos. Cita com carinho especial o espanhol Javier Arce e Jack Tannous, seu herdeiro em Princeton. Para o acadêmico, toda pesquisa é um grande investimento —em tempo, em conhecimento, em leituras: “Descobrir textos, ler com fluidez línguas como o árabe e o siríaco, é um trabalho duro, que precisa de um apoio adicional. Precisa de apoio institucional. Precisa de professores. Mas, quando você consegue, isso pode lhe dar uma visão muito mais rica e ampla do que as certezas estreitas”. Assim, sua opinião sobre o desdém com que alguns governos tratam as ciências humanidades é mais do que óbvia: “[Os políticos] estão mais preocupados com os custos de suas decisões. Estamos lidando com uma geração de políticos que carecem há muito tempo de uma educação humanista como a que nós tivemos. Não há nada mais trágico do que um homem que perdeu a memória”.

Sobre o julgamento da história, submetida ultimamente ao filtro da ultracorreção política —a demolição de estátuas de colonizadores e escravistas, por exemplo, depois de episódios de violência policial contra negros—, Brown, que passou parte de sua infância no Sudão colonial, onde seu pai era funcionário do Império Britânico, sustenta: “Não assumir a parte vergonhosa do passado é uma recusa a estar aqui, a ser adulto. Parte da identificação do adulto é o pertencimento a gerações anteriores. É como uma família, que nem sempre tem orgulho de seu tio ou seu avô... Qualquer pessoa madura deve assumir os membros anteriores de sua família, é um sinal de maturidade. Uma espécie de resiliência. Júlio César é um exemplo. Matou milhões de pessoas. E o terrível é que sabemos disso porque ele publicou. Devemos então rejeitar totalmente o Império Romano porque foi baseado nisso? Não, temos de aplicar, suponho, o que agora chamamos de visão binocular para enfocar corretamente”. O mesmo vale para episódios como a escravidão na antiga Roma, que permitia o acesso sexual dos homens às escravas, e o sistema semelhante que existiu nas plantações do sul da nova América, lembra ele.

Todas as ideias trazidas por Brown na salinha onde, em cadeiras de balanço frente a frente, ocorre a conversa rendem bastante, até mesmo ao ponto de estabelecer uma linha direta entre a inconsciência ou a incúria da história e a ignorância subjacente ao que chamamos de fake news. “Esquecer é uma tragédia. Pode libertar certas pessoas das más lembranças. Mas acho que o problema são as lembranças pela metade. Não é que tenhamos aberto mão da memória histórica, é que diminuímos nossa capacidade de nos interpor e criticar as falsas memórias históricas. Não se pode dizer que estes políticos, o Brexit, Trump, tenham ignorado a história, eles simplesmente a deturparam. Sabemos como isso foi feito nos países fascistas, nos países nazistas, nos países comunistas, e hoje também nos islâmicos. Distorcer a história é ainda pior do que esquecê-la. O perigoso são as meias memórias que os políticos utilizam para avivar o ressentimento e os medos.”

Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$

Clique aqui

Também é especialmente reveladora sobre a validade hermenêutica das ciências humanas —como elas ajudam a entender o mundo ao explicá-lo— sua experiência no Irã pré-revolucionário. “Fui ao Irã em 1974 e 1976, pouco antes da Revolução Islâmica [1979]. O Governo dos EUA queria saber o que estava acontecendo e entrou em contato com muitos professores em Berkeley, mas a maioria era especialista em desenvolvimento, o grande conceito dominante nos anos sessenta e setenta, e estudava, é claro, do presente. No santuário de Mashhad, tive uma sensação quase de pavor, de que um algo muito sombrio e possivelmente terrível iria acontecer. Os outros professores não perceberam nada por trás da fachada de país em desenvolvimento.” Porque um historiador é um bom jornalista, lembra com cumplicidade, assim como um bom jornalista deve conhecer a história.

O proverbial dom de línguas do Brown —aprendeu farsi no Irã; o armênio também está nos planos— apoia sua insistência na aprendizagem de “línguas europeias, não só latim e grego, muito úteis para a pesquisa, mas as línguas europeias, sem o conhecimento das quais a dimensão do mundo [em inglês] é rasa e plana. A cultura europeia é uma cultura multilíngue, e a força da Europa não é sua uniformidade, mas sua diversidade. Os alunos que não leem de forma natural o francês, o alemão, o italiano e o espanhol me preocupam, porque deveriam fazer isso”.

Como convencer que concluiu o ensino médio a estudar história? “Com a metáfora da viagem. Se você quer ver as pirâmides do Egito, ou conhecer Sevilha, por que não viaja no tempo? Viajar amplia a mente; a história não é apenas saber sobre o passado. Essa é uma visão estreita. Trata-se também de conhecer um mundo mais amplo, seja na atualidade ou no passado.”

Ao terminar a entrevista, e enquanto Peter Brown tira o carro para levar a jornalista até a estação, Betsy Brown mostra com respeito, na esquina, a casa onde viveu Albert Einstein enquanto lecionou em Princeton. A conversa terminou minutos antes com um caso de Oxford, quando o professor deu a seus estudantes um livro em polonês. “Mas também dei um resumo em francês”, acrescenta, como quem conta uma travessura. Os Browns oferecem um rápido passeio por Princeton que é outra lição de história, do local da batalha de 1777 ao estilo gótico de faculdades e da reitoria. “Woodrow Wilson [28º presidente dos EUA], que foi reitor”, conta Brown ao volante, divertido, “disse que era mais fácil governar o país do que a universidade”.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em