Um século de amores ocultos
‘Loving: A Photographic History of Men in Love’ reúne 327 fotos de casais gays do acervo de Hugh Nini e Neal Treadwell, obtidas em antiquários ao longo de 20 anos
Dois corpos; um se lança sobre o outro, agarra-o com força. Um braço rodeia e segura a cintura, as costas se arqueiam. Um fica sobre outro, a posição tende à diagonal, mas não se perde o centro de gravidade. Tudo se mantém no equilíbrio de olhos que se olham tão de perto que não são capazes se verem. É a estrutura de um beijo apaixonado: o de um soldado e uma enfermeira que não se conheciam, mas ficaram imortalizados em uma das fotos mais reproduzidas do final da Segunda Guerra Mundial; ou um dos beijos de Rhett Butler em Scarlett O’Hara em ...E o Vento Levou. De qualquer beijo, em qualquer época e lugar, e também o de dois rapazes norte-americanos que são retratados bem no instante anterior, quando se olham e sorriem. Seus rostos estão tão juntos que, embora a fotografia não registre o momento em que seus lábios se tocam, quem a vê não duvida de que isso é exatamente o que ocorreu um segundo depois. É uma espécie de código universal em que não importam sexo, gênero, raça, procedência, religião...
Esta é uma das 327 fotos reunidas em Loving: A Photographic History of Men in Love (“Amando: uma história fotográfica de homens apaixonados”, 5 Continents Editions, inédito no Brasil). Trata-se de uma seleção das mais de 3.000 fotos que Hugh Nini e Neal Treadwell reuniram durante os últimos 20 anos. Todo acervo diz algo sobre os colecionadores que o formaram, sobre seus gostos, sua vida… E mais ainda neste caso. Nini e Treadwell procuraram imagens de casais gays em antiquários de todo o mundo, de maneira presencial e através da Internet; os mais longínquos no tempo datam de meados do século XIX, e os mais recentes de meados do século XX. Naquelas épocas, ainda eram considerados casais de doentes. A OMS só retirou a homossexualidade da sua lista de doenças em 1990 — há apenas 30 anos. Um passeio pelas páginas deste livro demonstra que não havia nenhum sinal de enfermidade mental nos retratados.
Duas décadas como colecionadores, três como casal, milhares de fotografias e 21 países depois, o acervo destes texanos sai do armário. E não só as imagens, mas também os retratados, já que muitos deles mantiveram sua condição oculta por toda a vida — como ocultas haviam permanecido estas fotos. Mostrar-se era pôr em risco sua vida e sua liberdade. Atualmente, dos 193 países da ONU, em 68 as relações entre pessoas do mesmo sexo continuam sendo punidas com penas de prisão e até morte. Só 28 nações aceitam o casamento homossexual, o que não as livra de agressões homofóbicas: em 2018, na Espanha, a Federação Espanhola de Lésbicas, Gays, Trans e Bissexuais (FELGTB) registrou 971, dado bem distante das 259 denúncias notificadas pelo Ministério do Interior no mesmo período. A diferença se deve a que este último só inclui os supostos crimes, sem contar incidentes discriminatórios que possivelmente não constituem um delito. Isso para não falar em todas as situações que nem ficam registradas.
A maioria dos casais que compõem a coleção se manteve em silêncio. Muitas das fotos falam por si mesmas. As expressões e olhares são reveladores. Assim aconteceu com eles quando, em um antiquário, viram por acaso a primeira foto do acervo: dois jovens abraçados e olhando-se. Era dos anos 1920, e “evidentemente estavam apaixonados”, afirmam os colecionadores no livro. “Aquilo nos refletia”, acrescentam por e-mail. A foto seguinte foi achada em um leilão digital. Eram dois soldados dos anos quarenta que posavam com as bochechas grudadas. Estava emoldurada e no vidro gravado se podia ler: “Para sempre seu”. Esse foi o ponto de partida de uma coleção que continua crescendo. Esta foto, além disso, aponta para alguns dos elementos comuns entre muitos dos retratos: são soldados. Grande parte da coleção é composta por fotos de militares – tanto, que o casal pensa em publicar um segundo volume intitulado Loving: The Military Edition. Duas guerras, a norte-americana da Secessão e a Segunda Mundial, marcam a data mais antiga e mais recente das imagens. Nini e Treadwell explicam a profusão de homens fardados: “Os conflitos bélicos reúnem a serviço de seus países uma multidão de homens de diversas procedências que de outra maneira nunca se conheceriam”. Pelo menos hoje em dia, felizmente, quem quiser conhecer pessoas não precisa de uma guerra.
O “Para sempre seu” desta imagem é uma amostra de todas as fotos com algo escrito. “Aproximadamente 20% do acervo”, apontam seus donos. Pena que no livro não apareça o verso das fotos, mas Nini e Treadwell descrevem algumas inscrições: “Nossa favorita é uma, em uma foto de dois estudantes, feita por volta de 1910. Na parte de trás, a lápis, começa-se a ler: ‘Você é uma criatura tão linda…’. Sobre isto está escrito: ‘É uma pessoa egoísta sem coração’. E quem escreveu isso acrescentou chifres e barba aos retratados”. Outros textos descrevem paixões efêmeras: na parte da frente, dois jovens imortalizados em alguma pradaria dos EUA. Sentados sobre uma cerca de madeira, um passa o braço sobre o ombro do outro, que se recosta sobre ele. No verso: “Um amor passageiro. Uma simples evasão, mas ah, que cavalgadas. Verão de 1919”. Alguns pedem que as imagens sejam mantidas em segredo. “Sua sobrevivência dependia de que se mantivessem ocultos”, explicam os colecionadores. Outros servem para deixar entrever algo: “Mando-lhe uma foto que certamente lhe revelará uma parte da minha vida”, diz uma frase em búlgaro acompanha a foto de dois jovens em uma charrete.
Apesar de não ter um afã expressamente ativista, Loving acaba sendo-o, e muito. Mostrar todos estes casais gays é dar visibilidade, uma visibilidade característica do mundo em que vivemos, que o fotógrafo Joan Fontcuberta explica ao fazer uma versão do cartesiano “cogito, ergo sum”, em seu “imago, ergo sum”. O ser humano se faz presente no mundo ao fotografar e ser fotografado, e estas relações sentimentais atualmente têm uma presença que durante séculos lhes foi negada. Há algumas fotos que claramente têm uma intenção. Por exemplo, uma de dois meninos muito jovens que seguram um cartaz com os dizeres: “Not married but willing to b” (“Não somos casados, mas estamos a fim”). É uma das favoritas de seus donos, e garantem que tem mais de um século.
Ao mesmo tempo, este conjunto de retratos mostra outras lacunas que continuam existindo: casais inter-raciais ou casais de negros. Os autores estão muito conscientes destas carências. Esse é um de seus objetivos ao ampliar o acervo. Atualmente, eles dispõem de cerca de 30 imagens desse tipo. “Imaginamos que, como em qualquer outro aspecto da vida nos Estados Unidos durante os últimos 400 anos, os negros estiveram, e ainda estão, privados de seus direitos. É o pecado original norte-americano que ainda temos que expiar por completo”, afirmam.
E as mulheres? Onde estão os casais formados por elas? Nini e Treadwell deixam claro que esse não era o tema da sua coleção e estimulam quem quiser se ocupar desse campo. Mas reconhecem que já encontraram retratos de casais de lésbicas em suas buscas, embora apontem uma grande diferença em relação às fotos de homens: “Em sua maioria eram mulheres que atuavam para homens heterossexuais, entre elas não havia uma relação amorosa”.
Como conclusão do livro: retratos de beijos, como se fosse o final de Cinema Paradiso, aqueles que a censura, inclusive a autocensura resultante do medo, impediu de vir à luz. Nini e Treadwell afirmam que é um livro sobre o amor: “Uma emoção experimentada e expressa de forma idêntica por todos. Não há um amor homossexual nem um amor heterossexual. Só há amor. E às vezes acontece”.