Quem foi Cynthia Powell, a primeira mulher de John Lennon, que rompeu com sua imagem de santo
A britânica morreu em 2015 na sua casa na ilha espanhola de Mallorca. Durante a década de sessenta seu papel havia sido fundamental para evitar a separação dos Beatles, e nos anos oitenta apresentou ao mundo uma versão muito diferente do astro e ativista idolatrado pelo público
Cynthia Powell conheceu John Lennon em 1957, quando ambos ainda não tinham nem 20 anos. Na Escola de Arte de Liverpool, nada parecia pressagiar que aquele jovem, que acabava de formar um grupo chamado The Beatles, viria a ser um ídolo mundial. “Era um largado, um teddy boy [subcultura baseada no rock, surgida depois da Segunda Guerra Mundial]”, recordou Powell numa entrevista ao The Sun pouco antes de sua morte, em 2015. “Parecia que ele ia te bater se olhasse para ele. Foi parar na minha aula de caligrafia, mas ele não queria estar lá”, contou ela ao jornalista Alex Belfield.
Os pensamentos de Lennon na época estavam muito distantes daquelas salas de aula. Ele já tinha começado a compor canções em parceria com Paul McCartney. Não demorou muito para arregimentarem George Harrison e, junto com outros dois integrantes que depois deixariam a banda, fizeram seus primeiros shows em Liverpool. Powell, enquanto isso, continuava empenhada em virar professora de desenho, uma determinação que tinha desde os 12 anos, quando ganhou seu primeiro concurso desenhando uma bailarina para um jornal local, pelo que recebeu o prêmio de uma libra.
A história do casal começou com um ataque de ciúmes de Lennon no pub Ye Cracke. Depois de ignorar Cynthia durante toda a noite, pegou-a com força pela mão e, num quarto de pensão dos arredores, fizeram sexo pela primeira vez. Depois daquilo, Powell se desfez dos óculos e tingiu o cabelo de loiro, como Brigitte Bardot, do jeito que Lennon gostava. Juntos se lançaram a uma vida de sexo, drogas e rock and roll. O coito em becos era frequente. Os ataques de ciúmes, também.
As coisas ficaram realmente feias quando o músico esbofeteou a namorada após vê-la dançar com seu melhor amigo. Este episódio os levaria a se separarem durante três meses. A vítima assim recordou muitos anos depois em uma entrevista à BBC: “Ele ficou vermelho. Mas só no dia seguinte, depois de passar a noite remoendo, ele me agarrou na saída do banheiro feminino no subsolo da Universidade e me deu um tapa. Bati a nuca na tubulação e ele foi embora”.
Ela não foi a única a descrever a natureza do músico como violenta. Em 1980, numa entrevista à Playboy pouco antes de morrer, o próprio Lennon falou abertamente sobre seu temperamento machista. “Eu costumava ser cruel com minha mulher. Batia muito. Não sabia como me expressar e batia. Brigava com homens e batia nas mulheres”. Ao longo dos anos, Powell desenhou em numerosas ocasiões o perfil de um homem ciumento e possessivo, incapaz de se livrar dos seus demônios internos. “Perdi meu pai aos 17 anos, e ele perdeu a mãe dele num acidente de carro, também aos 17 anos. Embora só tenhamos falado sobre isso muito tempo depois, acho que aquilo nos uniu. Sentíamos empatia pela tragédia”, afirmou Cynthia anos depois.
A culpa de tudo (não) é da Yoko
Quando Powell ficou grávida “como resultado de uma noitada de sábado”, como comentaria Lennon depois, a jovem não teve remédio senão se casar com o artista. Juntos se mudaram para um apartamento que o empresário do grupo, Brian Epstein, tinha procurado para eles. Àquela altura, em 1962, a banda já tinha começado a fazer sucesso se apresentando em Hamburgo e estava prestes a lançar o seu primeiro álbum.
Cynthia abandonou seus desejos e sua vida. Virou mulher de. “Foi um casamento muito estranho em comparação aos outros. Não houve nem um fotógrafo. Não temos nem sequer uma foto daquele dia. O homem que nos casou parecia que estava num funeral e não em um casamento”, contou ela ao The Sun.
O empresário dos Beatles proibiu que a gravidez de Powell viesse a público. Assim, se tratava de evitar que o músico perdesse suas fãs, que já eram legião. Mas embora o casal se mantivesse afastado do alvoroço do centro da cidade, Cynthia sofria o assédio por parte das admiradoras de Lennon. “Tive que esconder minha gravidez durante meses. Estavam sempre me perguntando se eu era a mulher do John, e eu tinha que negar, dizer: ‘Não, não. Sou outra pessoa’”, recordou Cynthia a uma entrevista à rádio pública dos Estados Unidos em 1985.
“O fundamental para mim é que ambos se apaixonaram quando ela tinha 18, e ele 17”, disse o dramaturgo Mike Howl ao The Guardian em 2019, por ocasião da estreia da sua peça teatral This Girl, baseada na vida de Cynthia. “Sempre me incomodou que ninguém reparasse na influência de Cynthia [sobre a banda]”, acrescentou Howl. Ele disse que, se não fosse pelo apoio de Powell, que escutava os lamentos de seu marido diariamente, o músico “teria perdido totalmente o controle” e, consequentemente, certamente teria deixado a banda.
Contudo, o amor de Powell, que lutava à distância em sua casa de Weybridge (Londres) para criar o primeiro filho de ambos, Julian, não foi suficiente para salvar o relacionamento. Em 1968, depois de encontrar seu marido com Yoko Ono na sua cama, pediu o divórcio. Cynthia atribuiu o colapso do seu casamento ao consumo de LSD por parte de Lennon. Anos depois, o músico negou essa teoria em uma carta: “Como ambos sabemos, o nosso caso já estava acabado antes do LSD e de Yoko Ono. Essa é a realidade!”.
Na carta, que data de 1976 e foi leiloada anos depois, Lennon insiste que “as viagens [de ácido] eram dos dois” e que sua ex-mulher lhe havia pedido, depois do fim de seu relacionamento, que se separasse de Ono e voltassem a se casar. Para concluir, pedia-lhe que deixasse de falar sobre os Beatles e sobre ele na mídia.
Um divórcio, uma morte e uma herança
Powell teve que cuidar sozinha do seu filho. Depois da separação, recebeu 100.000 libras, mas o dinheiro logo acabou. Então decidiu leiloar alguns objetos pessoais vinculados ao ex-marido, como uma guitarra com dedicatória (“Para Julian, do papai. Natal de 1973”) e a letra que Paul McCartney escrevera para seu filho durante o divórcio dos seus pais (Hey Jules em vez de Hey Jude). Também tentou emplacar vários restaurantes dedicados aos Beatles, em que a decoração era composta por objetos relacionados à banda que Cynthia conservava. Em 1995, Paul McCartney produziu um álbum para ela, que passou praticamente despercebido.
Também escreveu duas biografias em que recordava os primeiros anos do cantor com ela: A Twist of Lennon (1978) e John (2005). Sobre este último livro, reconheceu que o único propósito da publicação havia sido ganhar dinheiro para pagar os vícios de seu filho, Julian, que pouco depois, após mais de uma década de litígio, conseguiria que Yoko Ono liberasse a segunda parcela (25 milhões de dólares) sobre o que legalmente lhe caberia da herança de seu pai. Quando Lennon estaria completando 70 anos, Yoko e Cynthia se reuniram pela primeira vez, aproveitando uma exposição de fotos de Julian em Nova York. Três décadas antes, quando Lennon foi assassinado, a artista conceitual tinha vetado a presença de Powell no funeral: “Não é uma amiga minha do colégio”. Em 2002, a primeira esposa de Lennon iniciou um relacionamento sentimental com o empresário Noel Charles, com quem viveu em Calvià, na ilha espanhola de Mallorca, no Mediterrâneo. Dedicou o tempo a desenhar. Cynthia Powell morreu em 2015.
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