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Sombras sobre os papéis de Neruda

Fundação que preserva o legado do poeta considera falsos ou duvidosos 32 dos 238 lotes que serão leiloados nesta quinta-feira, e que fazem parte do maior acervo privado sobre o Nobel chileno. Outro especialista questiona uma carta do poeta espanhol Miguel Hernández

Carta de Miguel Hernández a Neruda sobre cuja autenticidade desperta dúvidas.
Carta de Miguel Hernández a Neruda sobre cuja autenticidade desperta dúvidas.Colección Vivanco
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Washington (United States), 22/09/2016.- (FILE) - US poet Louise Gluck with the 2015 National Humanities Medal during a ceremony in the East Room of the White House in Washington, DC, USA, 22 September 2016 (reissued 08 October 2020). The 2020 Nobel Prize in Literature has been awarded to Louise Glueck, the Swedish Academy has announced. (Suecia, Estados Unidos) EFE/EPA/SHAWN THEW *** Local Caption *** 53031868
Louise Glück conquista o Nobel de Literatura 2020
Otras voces, otros ámbitos / Mario Vargas Llosa
Outras vozes, outros lugares

“Pablo, aqui vai isto com todo o afeto que tenho por você e um punhado de lembranças de ontem e de hoje…” Estas palavras que o poeta espanhol Miguel Hernández dirigiu a Pablo Neruda se encontram em uma carta escrita em papel marrom, datada de 8 de setembro de 1938, e que será leiloada nesta quinta-feira em Barcelona. Mas a missiva não é autêntica, segundo Jesucristo Riquelme, especialista na obra de poeta espanhol, e segundo Cristóbal Pérez, que representa uma família chilena que tem em seu acervo um exemplar de Viento del Pueblo, de Hernández, com uma dedicatória manuscrita a Neruda, que contém essas mesmas palavras. Eles suspeitam que alguém teria transcrito e transformado essa dedicatória na carta que agora vai a leilão. O presidente da Fundação Miguel Hernández, Aitor Larrabide, afirma haver “dúvidas razoáveis de que não seja um manuscrito original do poeta”.

Esta carta, cuja autoria está sendo questionada, soma-se a outros 28 lotes falsos e quatro de autenticidade duvidosa, conforme informou em março a Fundação Pablo Neruda à casa de leilões La Suite, de Barcelona, após examinar os 238 lotes procedentes do acervo do empresário vinícola espanhol Santiago Vivanco Sáenz, no que será a maior venda de documentos do Nobel chileno em mãos de particulares. O conjunto consta de 603 peças agrupadas agora em 238 lotes, com preços iniciais que variam de 50 a 80.000 euros (de 330 a 528.270 reais).

Dedicatória da coletânea de poemas ‘Viento del Pueblo’, de Miguel Hernández, a Pablo Neruda.
Dedicatória da coletânea de poemas ‘Viento del Pueblo’, de Miguel Hernández, a Pablo Neruda. Colección privada

Em fevereiro, a fundação viu o catálogo do leilão, e os documentos estavam em um único lote. Então, relata o presidente da Fundação Pablo Neruda, Fernando Sáez, “fizemos uma análise das peças e encontramos vários lotes duvidosos e outros que eram claramente falsificações, segundo o estudo feito por Enrique Inda, vice-presidente da fundação, e Darío Oses, diretor da biblioteca”. Em 6 de março, prossegue Sáez, o relatório foi enviado por e-mail à La Suite, que havia marcado o leilão para o dia 19 daquele mês ― evento que acabou adiado por causa da pandemia. No dia 10, a galeria respondeu que tinha enviado o estudo ao proprietário dos papéis, Vivanco.

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“Sempre fui muito franco”, alega Vivanco. “Nunca escondi nada de ninguém; tenho 25 anos como colecionador comprando de boa fé e todo mundo me conhece.” Defende que “as fundações dos autores é que devem dizer oficialmente, e de maneira clara, se as peças são falsas ou não”. E sobre a carta do poeta de Orihuela, Miguel Hernández, afirma que não pretende retirá-la “por recomendação do próprio diretor da fundação, que, por este episódio, ficou sabendo pela primeira vez da existência desse livro; porque ninguém vinculado a essa família chilena jamais entrou em contato com a fundação do poeta”.

Pablo Neruda
O poeta chileno Pablo Neruda apoiado em um barco durante a 34ª excursão anual do PEN pela cidade de Nova York em 1966.Sam Falk

Vivanco documenta que comprou a carta em 2003 e que, em 2004, a tornou pública e a compartilhou com a Fundação Miguel Hernández: “Eles pediram para fazer um fac-símile. A carta foi aceita como autêntica por estudiosos como Riquelme, e chegou a ser exposta na Espanha e Chile sem que ninguém nunca questionasse a autoria”. Na fundação do poeta de Orihuela, Larrabide aponta que sugeriu incluir uma nota explicativa na descrição do lote “como pedia a família chilena, porque não há tempo de fazer um estudo caligráfico”. Reconheceu que, como pesquisador, se deparou ao longo da vida com vários documentos falsos atribuídos a Miguel Hernández.

Cristóbal Pérez, representante da família chilena proprietária do livro cuja dedicatória semeia a dúvida sobre a autoria da carta, diz ter informado à La Suite sobre a situação: “Em 22 de setembro enviei um dossiê de seis páginas e três fotos em que revelo a existência do livro e ponho em evidência que o lote 142 é uma cópia, e lhes sugiro que alterem a descrição ou o retirem”. A La Suite acrescentou na segunda-feira, 5 de outubro, um texto explicativo: “Compra realizada pelo sr. Santiago Vivanco como carta autêntica de Miguel Hernández há mais de 15 anos, de um importante livreiro de Madri”. E um significativo: “Com conhecimento da Fundação Miguel Hernández”.

A coletânea com dedicatória

Riquelme, considerado o maior especialista na obra hernandiana, não tem dúvidas: “Vistos os dois textos manuscritos, o da dedicatória do livro é um autógrafo de punho e letra de Miguel Hernández, que não apresenta dúvidas de autenticidade: não só pela grafia e seu conteúdo, mas também pela coerente linha de conservação e propriedade”. Conforme explica, o exemplar de Viento del Pueblo saiu das mãos do poeta de Orihuela, chega a Neruda e à Hormiguita (Delia del Carril, então esposa do poeta); “ela o presenteia a seu médico chileno, e ele o vende a Patrício Pérez Aguilar em 18 de abril de 1993”.

Sobre a carta que vai a leilão, Riquelme tem mais dúvidas. Seria a transcrição da dedicatória que o poeta fez ao Nobel chileno em Viento del Pueblo, numa primeira edição de 1937, e quem a fez cometeu cinco erros de transcrição e outras anotações do livro. O preço da peça oscila entre 12.000 e 15.000 euros (entre 80.000 e 100.000 reais, aproximadamente), segundo a casa de leilões. Mas Riquelme considera que “carece de confirmação de origem; a mensagem literal deste documento apócrifo apresenta um aspecto que não se submete à formalidade estrutural de uma carta ou de uma dedicatória, nem se ajusta, em uma primeira aproximação grafológica, à letra do poeta”. E acrescenta: “A suposta carta, cotejada com a dedicatória, reúne os ingredientes para supor que seja uma cópia e não, nem sequer, um estranho rascunho ou um pré-texto”. O especialista sustenta que “isto obrigará a fixar o texto do escrito de Hernández com as variantes que se observam na dedicatória do proprietário chileno, embora o conteúdo, salvo por cinco variantes, seja idêntico ao da carta”.

O proprietário da carta em disputa, Vivanco, por sua vez, nega ter recebido qualquer relatório da Fundação Pablo Neruda. Admite que teve acesso ao estudo através de “uma pessoa próxima a ela, mas a título pessoal”. Essa pessoa seria o vice-presidente da entidade, Enrique Inda, que “no final da semana passada” lhe comunicou que algumas peças poderiam ser falsas, e outras eram duvidosas. “Mas nem me deu provas nem razões suficientes para retirá-las”, observa o empresário.

A casa de leilões La Suite afirma que os papéis de Neruda “não têm problemas”, a tal ponto que o Governo do Chile fez “uma oferta que, embora não superasse o lance inicial, se podia dizer que estavam quase vendidos, mas com a crise do coronavírus tiveram que retirá-la”, segundo Beatriz du Breuil, da La Suite. Inicialmente, os especialistas quantificam em 650.000 euros o valor total dos lotes. Du Breuil explica que sempre entram em contato prévio com as fundações ou os especialistas, mas “desta vez não o fizemos porque todo este material já nos veio filtrado pelo próprio colecionador e pela exposição pública das obras”.

Dentro dos 28 lotes que a Fundação Pablo Neruda considera falsos figuram livros com dedicatórias a Salvador Allende, de quando ainda não era presidente do Chile: “Para meu querido Salvador Allende, com a amizade incondicional e a toda prova deste humilde poeta de Temuco, que canta à Pátria, com toda sua alma de chileno. Um abraço do Pablo Neruda, 1969”. Ou ao escritor e diplomata guatemalteco Miguel Ángel Asturias: “Para Miguel Ángel Asturias: Era uma ave de fogo por trás de todas as ondas fissuradas. Seu amigo, Pablo Neruda, 1972. Paris”.

Outra das peças duvidosas é o exemplar de Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada dedicado a Gabriel García Márquez, avaliado em 30.000 a 35.000 euros. Vivanco afirma ter uma carta de Mercedes Barcha, esposa de García Márquez, datada de março passado (quatro meses antes de sua morte), em que ela “reconhece que o livro é autêntico, como o manuscrito de Neruda”, embora observasse que não lhe constava que fizesse parte da biblioteca pessoal do seu marido.

Exemplar de 'Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada' que o poeta Pablo Neruda dedicou a Gabriel García Márquez e faz parte da coleção Santiago Vivanco.
Exemplar de 'Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada' que o poeta Pablo Neruda dedicou a Gabriel García Márquez e faz parte da coleção Santiago Vivanco.LLUIS GENE (AFP)


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