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Hollywood descobre o elixir da juventude

Técnica digital que permite retirar anos dos atores entra no cinema com ‘O Irlandês’, de Scorsese, e coloca um debate que vai além da tecnologia sobre o futuro da interpretação

Pablo Ximénez de Sandoval

Os efeitos especiais mais difíceis de se fazer no cinema são aqueles que todo mundo sabe que são efeitos especiais. Quando a tecnologia é parte da atração de um filme, está na conversa e é uma das razões para vê-lo, o espectador dá atenção especial, para ver o que se nota, onde está o truque. No caso de O Irlandês, além disso, os efeitos tentam nos convencer de que alguns dos atores mais conhecidos do mundo não têm o aspecto que todos sabemos que têm. O desafio para torná-lo crível é maiúsculo. O fenômeno cinematográfico do ano não só trouxe à tela a saudade de Martin Scorsese, Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino em uma história de mafiosos, também abriu uma porta ao futuro dos efeitos visuais, da maquilagem e da interpretação. Nas salas de cinema também pode ser visto o outro grande exemplo da temporada: Projeto Gemini, em que um Will Smith mais velho enfrenta ao longo de todo o filme um Will Smith jovem.

O Irlandês abrange quatro décadas na vida de seus personagens e o faz com a técnica do rejuvenescimento digital, de-aging. Scorsese utiliza atores septuagenários dos quais a equipe de efeitos visuais da Industrial Light & Magic retirou anos digitalmente de acordo com a idade que devem ter em cada momento. O resultado recebeu elogios generalizados de um público que talvez até agora não havia percebido o quanto essa técnica vem sendo utilizada no cinema. Na divulgação do filme, tanto Pacino como De Niro agradeceram a pouca ingerência da equipe na filmagem: “Usaram botões discretos para as referências digitais, nada de roupas de captura de movimento”.

Robert De Niro em 'O irlandês'.
Robert De Niro em 'O irlandês'.NETFLIX

“Você ficaria surpreso em saber o quanto do mundo da realidade aumentada já existe no cinema”, diz por telefone Beau Janzen, professor na Gnomon, uma das melhores escolas de efeitos visuais em Hollywood. “Fazemos esse trabalho há décadas”, afirma, de mudar corpos a acrescentar andares de edifícios. Janzen trabalhou em produções em que foram feitos “arranjos de beleza porque a maquilagem não era suficiente para as expectativas das atrizes”; e mover os olhos de um ator porque não estava olhando na direção correta; e misturar frases de tomadas diferentes e fazer com que pareça que o ator as diz na sequência. “Todos os filmes atuais e a maioria das séries têm certa quantidade de efeitos”.

O de-aging foi usado em filmes como a saga Piratas do Caribe, em X-Men 3: O Confronto Final, Capitã Marvel e Tron: o Legado. Mas O Irlandês é o primeiro grande filme de teor clássico que usa essa tecnologia. Um filme de Scorsese, De Niro, Pacino e Pesci com jeito de Oscar, traz um novo nível de importância a uma tecnologia até agora associada ao puro espetáculo visual. “É uma ferramenta da Marvel em um filme de Scorsese”, resume Janzen.

Os profissionais dos efeitos especiais estão tão espantados como o público em geral com o resultado. “Em de-aging nunca vi nada parecido”, diz Janzen, cujos créditos incluem Stranger Things, Westworld e The Walking Dead. “Eu me impressionei com a quantidade de planos em que aparece e pela resolução. A Netflix faz tudo em 4K, que é o dobro da alta resolução”. Uma minoria verá o filme no cinema, mas os milhões que o verão em suas televisões de alta resolução (no Brasil, os usuários da Netflix poderão vê-lo a partir de quarta-feira 27 de novembro) também poderão apreciar até os poros de uma pele criada por computador. Também se soma “a complexidade das sequências e uma interpretação muito delicada”, além de um escrutínio especial do público que os filmes de super-herói não têm. O desafio era formidável e, em geral, os críticos ficaram sem palavras.

Em uma entrevista ao site Sight & Sound, Scorsese argumentou que no fundo não está fazendo nada que já não tenha sempre sido feito. “No cinema existe a convenção do uso da maquilagem”, diz. “Nos filmes antigos, o público aceita que o cabelo está tingido e que o bigode é falso. Você se deixa levar pelo engano”. Scorsese cita filmes em que há uma maquilagem protésica importante como O Homem Elefante (1980) e Pequeno Grande Homem (1970). Apesar da maquilagem praticamente ocultar o rosto de John Hurt e Dustin Hoffmann, todo mundo reconhece que são grandes interpretações. A questão do de-aging é “isso em outro nível”, afirma Scorsese. “E acho que, a longo prazo, pode acabar sendo superior”.

Craig Barron, que ganhou o Oscar de melhores efeitos especiais em 2008 por O Curioso Caso de Benjamin Button e é professor de efeitos especiais na Universidade do Sul da Califórnia (USC), o vê como “outra forma de solucionar o problema de contar histórias que abarcam décadas”. A maquilagem protésica só pode aumentar as feições do rosto, não as reduzir. A partir de certa idade, o nariz engrossa e não pode ser rejuvenescido com maquilagem. É possível fazer com que pessoas de trinta anos pareçam ter setenta, mas não o contrário. A alternativa é contratar outro ator. Para dar um exemplo de mafiosos, Barron cita Anjos de Cara Suja (1938), em que outro ator interpreta James Cagney quando jovem.

O debate suscita a pergunta sobre o que teria feito Francis Ford Coppola se tivesse essa tecnologia disponível em 1974, quando precisava de um ator para interpretar Vito Corleone (Marlon Brando) quando jovem. De Niro teria chegado a interpretar esse papel? Há por aí um De Niro atual de 30 anos que perdeu a possibilidade de fazer o papel de sua vida em O Irlandês? É inevitável pensar que há uma dimensão ética no uso do rejuvenescimento por computador que não foi debatida suficientemente.

Para Barron, a única pergunta válida é se funciona ou não. “Essa técnica, no final das contas, depende da interpretação. O personagem não é criado pelos animadores. É criado por Robert de Niro e os efeitos visuais o potencializam. A única coisa que devemos nos perguntar é se interfere na história”, diz Barron. Ele acha que O Irlandês conseguiu “expandir a gama de possibilidades dos atores”. Gostou muito do que foi feito. “Podemos ver o desenvolvimento dos personagens e nunca sentimos que não são eles. O importante é que a tecnologia não se interpõe. O filme é uma viagem de décadas e é visto como um todo”.

Até onde pode ir? Beau Janzen afirma que os contratos dos atores já estão começando a refletir o que se pode e o que não se pode fazer com suas imagens. “Quando você tem a face de alguém e pode controlá-la, pode fazê-lo dizer qualquer coisa”. Essa realidade é cada vez mais evidente com o aperfeiçoamento dos chamados deep fakes, vídeos manipulados de maneira indetectável que podem colocar qualquer rosto em qualquer situação, que funcionam tão bem na Internet e que podem ser vistos na televisão atual nos falsos debates eleitorais em El Intermedio.

Para Craig Barron, no cinema não há o mesmo debate que nos vídeos casuais do Facebook, uma vez que o limite sempre será que funcione dramaticamente. Levar a manipulação muito longe “é arriscado”. “Se você se separa da intenção original já não se parece com o que o ator fez. Suspeito que Scorsese foi muito cuidadoso em respeitar a integridade da interpretação. Caso contrário, você não precisa de atores como esses”.

“Se você pensa sobre isso, é algo que já é feito na capa da Cosmopolitan”, diz Janzen. “É o mesmo nível de controle de imagem, mas nos filmes. O público só fala dos efeitos especiais vistos. Não percebe a quantidade de coisas que existem e não se vê. Foi feito durante décadas. O Irlandês é o auge”.

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