“Em cinco anos, passar o dia no WhatsApp será tão mal visto quanto fumar num avião”
Em seu livro ‘Ser humanos’, o neurologista Facundo Manes defende as funções “insubstituíveis” da humanidade frente à tecnologia e alerta para os futuros efeitos da pandemia sobre a saúde mental
Foi em uma aula de Anatomia, no primeiro ano da faculdade de Medicina, que Facundo Manes (Buenos Aires, 52 anos) ficou fascinado pelos meandros do cérebro. “É o único órgão do universo que tenta entender a si mesmo”, diz com entusiasmo o médico, que se especializou em neurologia pela Universidade de Buenos Aires e prosseguiu seus estudos no campo da neurociência e a neuropsiquiatria nos Estados Unidos e Reino Unido.
Sentado em uma poltrona do imponente salão do Hotel Casa Fuster, em Barcelona, Manes esmiúça os segredos do órgão mais sofisticado do planeta, o que se sabe sobre ele, e o que ainda falta saber. Acaba de publicar na Espanha o livro ‘Ser humanos —todo lo que necesitas saber sobre el cerebro’ [Ser humanos —tudo o que você precisa saber sobre o cérebro, ainda sem tradução] um relato ágil sobre as principais descobertas da neurociência, no qual aproveita para fazer uma defesa das habilidades exclusivas do ser humano. Numa era conturbada, onde a tecnologia testa os limites da ciência e uma pandemia pôs o planeta em xeque, Manes convida à introspecção: “A maior força para o presente e para o futuro não é o computador mais sofisticado ou ter dinheiro ou poder, e sim pensarmos como humanos para combater a mudança climática, a desigualdade e enfrentar os grandes desafios da humanidade”.
Pergunta. O que e quanto sabemos sobre o cérebro?
Resposta. Avançamos nas últimas décadas mais do que em toda a história da humanidade. Mas nos falta uma teoria geral sobre o cérebro. A pergunta-chave é se o ser humano será capaz de entender seu próprio cérebro.
P. O que é o mais importante que ainda falta saber para dar um salto qualitativo na neurociência?
R. A consciência, o entendimento de como os circuitos neuronais dão lugar a este sentimento íntimo, privado, pessoal e subjetivo que você e eu estamos sentindo. Não temos nem ideia de como isso funciona.
P. Em seu livro, você diz que hoje o cérebro está sendo testado “de forma drástica”. O que isso significa?
R. Pela primeira vez na história, a evolução imediata do cérebro não será biológica. Há atualmente novas tecnologias com as quais estamos permanente conectados; os jovens são nativos digitais, e existe a interface cérebro-máquina [dispositivo que decodifica a linguagem do cérebro e conecta o órgão a um computador]: hoje é possível instalar eletrodos que registram o pensamento para mover um braço, um programa decodifica isso e um braço robótico se move obedecendo aos pensamentos dessa pessoa. A pergunta é: como vamos evoluir? A tecnologia moderna impacta nosso cérebro, embora não vá mudar sua estrutura. Estamos nos dirigindo a um mundo pós-pandemia onde valorizaremos o ser humano. Em cinco anos, passar o dia todo no WhatsApp será tão mal visto como fumar em um avião. A tecnologia não vai mudar a estrutura do cérebro, mas acredito que pela primeira vez estamos perante um dilema que possibilitará nossa evolução. Não será pela biologia como antes, mas sim pela interface cérebro-máquina. Pode haver um salto evolutivo para algo que não tinha acontecido.
P. Mas para onde? Porque esse salto pode ser para o bem ou para o mal.
R. Exato. O que acontece se isso que está sendo estudado para fazer o bem, para ajudar pacientes, for usado para modificar a atividade neural de uma pessoa no futuro? Por isso é necessário que cresça a neuroética, que é a avaliação ética dos avanços do estudo do cérebro.
P. Você fala em neuroarmas. O cérebro pode se transformar em uma arma de combate?
R. Faz sentido, porque a Agência de Pesquisa de Projetos Avançados em Defesa, que é uma instituição associada ao Departamento de Defesa norte-americano, está investindo muito em neurociência para aumentar a resiliência dos soldados. Talvez no futuro seja possível manipular a mente de alguns soldados com tecnologia. Atualmente esta área é embrionária, mas é preciso prestar atenção a ela. Talvez as guerras do futuro sejam neuroguerras, manipulando a mente do adversário ou aumentando a resiliência ou a resistência à dor dos soldados.
P. Com relação aos problemas de saúde mental, que também são doenças do cérebro, o que se sabe?
R. Sabemos, sobretudo, detectá-los melhor do que antes, e sabemos que todos têm um componente biológico subjacente. Mas ainda nos falta um marcador biológico, como existe no caso do diabetes. A saúde mental é uma das áreas em que será preciso investir mais. As pandemias mudam as sociedades, para o bem ou para o mal. Depois da peste negra chegou o Renascimento, que foi algo bom. Nesta pandemia, o impacto para a saúde mental durará mais do que a pandemia. Hoje ele impacta sobretudo cinco grupos: os jovens, porque foram pegos numa etapa de desenvolvimento cerebral e modulação das emoções; as mulheres, porque aumentou a violência doméstica; os idosos, porque havia uma epidemia de solidão antes da pandemia que se agravou; os profissionais da saúde e os pobres.
P. Os especialistas já dizem que estamos em uma pandemia de saúde mental ruim. Como se confronta isso?
R. Em uma pandemia, a resposta à saúde mental deve ser tão importante como a vacinação. Não se pode separar a saúde física da saúde mental. É preciso fazer uma grande campanha de psicoeducação, dar ferramentas às pessoas para detectarem o estresse, a angústia, a ansiedade, e poder enfrentá-los.
P. Você repete no livro que o cérebro é um órgão social. Mas a pandemia nos levou ao isolamento. Como essa crise sanitária afetará o cérebro?
R. O que o vírus fez foi pegar o que há de mais importante na nossa espécie, que é o contato humano, e usá-lo contra nós. Ainda continuamos sem nos abraçarmos nem nos tocarmos. E isto é muito importante porque, assim como a sede é um alarme biológico que nos recorda que precisamos nos hidratar, a solidão é um alarme biológico que nos recorda que somos seres sociais. O órgão mais complexo do universo é um órgão social, e a pandemia o que fez foi evitar o contato social e aumentar a solidão. E a solidão crônica é um fator de mortalidade tão importante como a obesidade ou o tabagismo, e mais importante que a poluição ambiental. Se você estudar crises, guerras, epidemias e pandemias, há uma boa notícia: os seres humanos são seres adaptativos e resilientes.
P. Mas se somos seres sociais, e o altruísmo ativa os sistemas de recompensa, por que vivemos em um mundo tão individualista?
R. É o fator humano. Acredito que há uma crise de empatia na sociedade atual. Vivemos na melhor época da história da humanidade, e temos ansiedade, estresse… Temos vieses, vemos vida através de óculos que vamos construindo à medida que crescemos: construímos preconceitos, muros… A maior parte da decisão humana não pode ser analítica ou racional, porque exige um gasto mental, e temos recursos cognitivos limitados. Então vivemos de forma automática, com hábitos. Há um fator humano que influencia nossa conduta e nos leva à falta de empatia, mas a boa notícia é que isso pode ser modificado.
P. Somos nosso pior inimigo?
R. Sim, e isso nos faz, ao mesmo tempo, mais infelizes. Porque o que nos dá bem-estar é o oposto. Estamos talvez vivendo mais automaticamente do que precisamos para desfrutar da vida. Estou certo de que em cinco ou dez anos vamos valorizar muito o ser humano. Essa conversa será o que haverá de mais cool e sofisticado.
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