OCDE melhora de novo sua previsão de crescimento global graças ao forte empurrão dos Estados Unidos
Projeção para o PIB mundial fica em 5,8%, enquanto Brasil deve crescer 3,7% em 2021, e 2,5% em 2022. Organização alerta para o papel crucial da vacinação em massa para o crescimento dos países
Os anglo-saxões utilizam o termo game changer para se referir a eventos ou decisões que viram o jogo, mudando o curso natural dos acontecimentos, quase sempre para melhor. Os enormes estímulos mobilizados pela nova Administração norte-americana estão a caminho de ser algo assim para o mundo todo: a economia dos Estados Unidos crescerá 6,9% neste ano, segundo a projeção publicada nesta segunda-feira pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), puxada pelas transferências de dinheiro – que conseguiram reavivar o consumo – e os abundantes planos de infraestrutura – que prometem modernizar um capital físico deteriorado, ao mesmo tempo em que volta a pôr em marcha a engrenagem da atividade.
As projeções para o Brasil também são otimistas. Diante da histórica retração de 4,1% no ano passado, o PIB neste ano deve crescer 3,7% segundo a organização, e 2,5% no ano que vem. O crescimento é atribuído ao “aumento progressivo do consumo das famílias e do investimento”, de acordo com o relatório divulgado nesta segunda-feira. O otimismo, no entanto, necessita de um esforço de vacinação em massa, para que seja cumprido. “A recuperação dependerá de uma redução drástica na propagação do vírus”, diz o relatório. “São fundamentais medidas que controlem a epidemia com rapidez, como uma aceleração da campanha de vacinação e um melhor rastreamento dos contatos”, afirma o documento, que aponta também para o “ritmo lento” da vacinação “apesar da capacidade de produção nacional de vacinas”. A organização também defende uma reforma fiscal para fortalecer o investimento público e elevar o potencial de crescimento da economia.
Nos Estados Unidos, o espetacular desempenho, que pouco depois da metade deste ano já deve ter recuperado todo o terreno cedido durante a crise, somado à capacidade de resistência da China (+8,5%, 0,7 ponto acima do previsto até agora) levará no seu rastro a zona do euro, que despontará 4,3% (0,4 ponto a mais do antecipado), apesar do seu maior acanhamento na hora de gastar. Acima de tudo, empurrarão a economia mundial em seu conjunto, que crescerá 5,8%, 0,2 ponto percentual a mais do que se previa antes. A melhora global não é tão intensa como a aplicada na revisão de março, quando o crescimento foi elevado em 1,4 ponto, mas os prognósticos continuam aumentando cada vez que é preciso atualizar o quadro.
“Continua sendo o momento de gastar”, dizia neste domingo o ainda secretário-geral da OCDE, Ángel Gurría, em uma entrevista ao EL PAÍS. E isso é exatamente o que os EUA estão fazendo, desafiando inclusive quem alerta para o risco de superaquecimento ou descontrole inflacionário. O pacote norte-americano de resgate agregará entre três e quatro pontos ao seu próprio PIB no primeiro ano completo após o lançamento, (2021), e um ponto a mais ao crescimento mundial. Todas as economias se beneficiarão da maior demanda norte-americana, mas há graus: o benefício será mais intenso para as mais interconectadas com o gigante norte-americano (Canadá e México), e um pouco menos para Europa, Japão e China.
“O impulso da economia norte-americana se fortaleceu, ajudado pelos estímulos e a vacinação”, dizem os economistas do organismo com sede em Paris na sua última revisão da economia mundial. “Seu grande estímulo fiscal ajudará a fortalecer a recuperação global.”
Apoio público sem precedentes
A reboque dos EUA, a sala de máquinas da economia mundial está muito melhor do que se poderia imaginar em dezembro do ano passado, quando Biden ainda não tinha tomado posse e faltavam duas semanas para que se inoculasse a primeira vacina contra a covid-19 nos EUA, e uma para que se injetasse a primeira dose no Reino Unido. Na época se esperava que o crescimento global rondaria 4,2% neste ano, superando com muita dificuldade o nível do PIB pré-crise, mas a melhora substancial das previsões desde então joga aqueles vaticínios por água abaixo: o mundo crescerá mais graças à imunização maciça nos países que até agora puderam oferecê-la, e graças também a uma resposta mais keynesiana do que nunca em Washington, que continua deixando simpatizantes e adversários boquiabertos.
Em março de 2020, quando o mundo se enchia de incógnitas à medida que os países iam entrando no túnel dos confinamentos, a economista-chefa da OCDE, Laurence Boone, já antevia o que estava por vir e apelava a um “big bang orçamentário” para evitar uma depressão econômica de grandes proporções: “Não são os bancos centrais que vão nos salvar desta vez, mas os orçamentos dos Estados podem fazê-lo”, dizia. Um ano e dois meses depois, seus apelos foram atendidos, e a economista francesa utiliza nesta segunda-feira o adjetivo “impressionante” para se referir ao desempenho previsto para este 2021, com um apoio dos países (fiscal e monetário) que “em nenhuma outra crise tinha sido tão rápido e efetivo”.
Contudo, observa Boone, alguns importantes ventos contrários continuam soprando, como a desigual distribuição da vacina, muitíssimo mais rápida no bloco rico que nos países em vias de desenvolvimento. “O mundo navega hoje para a recuperação, embora com muitas fricções. O risco de que o crescimento pós-pandemia não seja globalmente compartilhado é elevado e depende em grande medida da cooperação internacional”, escreve a principal responsável por análise desse think tank, recordando que, em muitas economias (inclusive muitas das avançadas), até o final de 2022 o nível de vida ainda não terá retornado aos padrões pré-pandêmicos. Em síntese: quem tem possibilidades deve se preocupar com a situação do resto, ou há o risco de fundo de uma recaída global com novas mutações do vírus que poriam todos em xeque.
A inflação e o risco de exagerar na dose
A rápida reativação da economia é uma boa notícia em si, pelo que representa, mas também porque dá confiança a empresas e consumidores para investir e gastar sem tanta preocupação e temor, o que por sua vez gera um nível adicional de otimismo sobre o crescimento em médio prazo. As economias acumuladas pelas famílias que tiveram a sorte de manterem suas fontes de renda são vastas, “e o gasto unicamente de uma fração desse excesso de economia acumulada elevaria significativamente o PIB”. “Os lares”, opinam os técnicos do organismo, “poderiam normalizá-lo antes do previsto”.
Mas essa conversão em bloco da poupança em consumo também cria dilemas importantes: com a recuperação assentando-se com uma consistência maior que a prevista, multiplicam-se as advertências de quem antevê uma saída inflacionária da crise. E esse pode ser o estopim definitivo.
A OCDE não descarta totalmente essa possibilidade e recorda que nos próximos meses esse indicador provavelmente continuará tendendo à alta por uma combinação de efeito-base (a comparação interanual é estabelecida com o mesmo período do ano anterior, quando os preços haviam caído muito devido à paralisia econômica provocada pelo vírus), alta das matérias-primas e gargalos nas cadeias de suprimento de alguns produtos essenciais nos dias de hoje, como os semicondutores. Entretanto, acredita que a pressão sobre os preços será “temporária” e que o maior risco é que certos mercados financeiros, muito temerosos, reajam de forma exagerada e provoquem um aumento das taxas de juros com as quais Estados e empresas se financiam.
“Nos últimos meses apareceram sinais de maior pressão pelo lado dos custos”, admitem os técnicos do organismo. “Mas a capacidade ociosa continua sendo considerável e isso deveria evitar uma alta significativa e sustentada na inflação subjacente [a que não leva em conta nem a energia nem os alimentos, de longe os elementos mais voláteis da cesta de cálculo]. É pouco provável que as taxas de desemprego retornem a níveis pré-pandemia antes do final de 2022, então a pressão deveria ser apenas modesta nos 18 próximos meses”, raciocinam. “A política monetária atual, muito acomodatícia, deveria ser mantida, permitindo ultrapassar temporariamente a inflação, desde que a pressão sobre os preços subjacentes continue contida”. O erro de 2011, quando o Banco Central Europeu subiu os juros muito antes do que deveria para afastar um suposto risco inflacionário, continua muito fresco na memória.
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