Opinião

A imprensa que ignora riscos para 2022

Nos aproximamos de um ano eleitoral muito emblemático para o país. Não existem dois lados quando um lado é a barbárie, a negação da ciência e a falência na defesa da vida dos brasileiros

Daniel Campelo da Silva, 51 anos, que ficou cego de um olho a após ser atingido por uma bala de borracha da polícia, que dispersou violentamente o protesto neste sábado.INSTAGRAM @hugomunizzz (Reuters)

Daniel Campelo da Silva, 51 anos, ficou cego de um olho ontem. Morador dos Torrões, zona oeste do Recife, ele foi uma das pessoas violentamente atingidas na manifestação que pediu vacinas e o impeachment de Jair Bolsonaro. Ele sequer participava da manifestação. Daniel, que trabalha com adesivagem de carros, foi ao centro da cidade para comprar material. E ele não foi o único. Socorrido no mesmo hospital, Jonas Correia de França também foi ferido nos olhos, mas não chegou a perder a visão. Uma vereadora também foi agredida. Manifestantes presos vão responder a inquérito.

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No início de maio houve outra manifestação em Pernambuco, em apoio a Bolsonaro, que decorreu sem nenhum infortúnio. Cobrado pelas discrepâncias de tratamento em relação aos manifestantes e pelas atrocidades cometidas pela Polícia Militar, o governador Paulo Câmara (PSB) foi evasivo. Sem citar nomes, disse que afastou o militar responsável pela ação. Quem deu a ordem para a ação violenta? Ele não respondeu. Por outro lado, a vice-governadora, Luciana Santos, disse que a ação não foi autorizada pelo Governo do Estado.

Manifestações semelhantes aconteceram em mais de 100 cidades brasileiras ―sem tal violência. As principais avenidas do centro de São Paulo e Rio de Janeiro ficaram lotadas. E apesar disso, pouco se viu nas coberturas ao vivo dos grandes canais. Para quem ainda lê jornal impresso, a impressão é que o país está bem. A capa do Estadão e do Estado de Minas destacaram ―ambas― as maravilhas do turismo; a do jornal O Globo deu destaque ao pífio e ilusório aquecimento do PIB. A Folha de São Paulo se saiu melhor e destacou na manchete: “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país”.

A Record foi mais descarada. Mentiu deliberadamente sobre as razões das manifestações. Teve a audácia de dizer que eram pró-auxílio emergencial e sequer mencionaram o nome de Jair Bolsonaro. Foi uma vergonha. Mas não é novidade. Quem não se lembra da TV Globo mentindo sobre a cobertura das Diretas Já, nos anos 80? Fez como a Record, mentiu. Disse que as manifestações pela democracia e fim da ditadura eram pelo aniversário de São Paulo. Muitos anos depois, pediu desculpas. A Folha não chegou ao extremo de se desculpar, mas admitiu ter errado ao chamar ditadura de ditabranda… Sobre ceder carros para apoio aos ditadores, como afirmou o ex-delegado da Polícia Civil Cláudio Guerra em depoimento à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, o jornal negou. E nem precisamos ir tão longe. Na cobertura de 2018 a Folha se negou a usar o termo “extrema direita” para Jair Bolsonaro, ignorou os riscos e depois mudou o logo para amarelo, na campanha #UseAmareloPelaDemocracia. Que democracia?

É uma vergonha. E é uma vergonha nociva, que se volta também contra a própria imprensa.

Desde o início do Governo Bolsonaro, o Brasil caiu quatro posições no ranking de liberdade de imprensa feito pela Repórteres sem Fronteiras. É a primeira vez que o país adentra a “zona vermelha”. Para a ONG, o ambiente para o trabalho de jornalistas se tornou tóxico e isso é uma estratégia governista. Não é acaso.

Relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) mapeou 428 ataques a jornalistas em 2020, a um aumento de cerca de 106% em comparação ao ano de 2019.

E piora.

De acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em janeiro deste ano, esses ataques mais do que dobraram se compararmos ao mesmo período do ano anterior. Só no primeiro trimestre houve 54 casos de agressão.

Jornalistas também já foram cegados em manifestações. Estão apanhando nas ruas dia após dia. As decisões tomadas nos gabinetes editoriais das grandes empresas de comunicação deixam os repórteres nas ruas e online à mercê de ataques.

Os governadores não têm controle sobre as polícias, o que nos deixa de frente com o risco de não haver eleições minimamente livres em 2022. De que lado da história a imprensa estará? (Esta pergunta é retórica).

Nos aproximamos de um ano eleitoral muito emblemático para o país. Não existem dois lados quando um lado é a barbárie, a negação da ciência e a falência na defesa da vida dos brasileiros.

Mas eu não acredito que a história vá cobrar. Se cobrasse, não estaríamos aqui de novo. Então, boa sorte colegas!

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