A extraordinária visita de indígenas isolados a uma aldeia remota no Acre

Mais de dez deles se aproximaram amigavelmente e conviveram durante horas com seus anfitriões para surpresa dos especialistas

Povos indígenas isolados do curso superior do rio Humaitá, do povoado dos que agora já visitaram uma aldeia, fotografada em 2016 de um helicóptero.Ricardo Stuckert
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O resto do mundo sabe tão pouco sobre eles que nem sequer lhes deu um nome próprio. Os estudiosos os chamam de indígenas isolados que vivem no alto do curso do rio Humaitá. Habitam um dos lugares mais remotos do planeta e até agora esse grupo de indígenas brasileiros preferiu ficar sozinho, sem contato com outros povos ou com brancos. Mas há algumas semanas um deles chegou à aldeia Terra Nova, na Amazônia. A coisa mais extraordinária aconteceu no dia seguinte.

O visitante não apenas se aproximou dos moradores da aldeia, mas também passou a noite na casa de um deles. Sabemos disso porque os anfitriões também são indígenas, mas têm contato com forasteiros; são de outro grupo, falam uma língua diferente. O cacique local, Cazuza Kulina, relatou a visita a uma jornalista do portal G1. “Demos a ele roupas, cobertores, utensílios, mandioca, banana... dormiu na casa do meu genro”, explicou este indígena da etnia Kulina Madiha. Quando se levantaram, o visitante havia desaparecido. “Ele pegou tudo e foi embora, nem o vimos sair.”

No dia seguinte, alguns pescadores da aldeia tiveram uma grande surpresa ao se depararem com mais de uma dezena de “brabos”, como os indígenas chamam esses vizinhos que até agora preferiam viver sem contato com estranhos. Estavam procurando aquele que veio antes. “Eram mulheres, crianças, homens adultos... Depois foram pelo rio até sua aldeia”, disse o cacique. Levaram mais objetos, incluindo garrafas e pedaços de vidro para cortar os cabelos. “Vivem isolados a cerca de quatro horas daqui, são gente boa, não mexem conosco”. Estavam todos desarmados, nus.

Os visitantes pertencem a um grupo do qual se tinha notícia desde 2008, quando foram descobertos durante um voo sobre esta região do Acre, na fronteira com o Peru. Atacaram a aeronave com flechas. Há quatro anos, o fotógrafo Ricardo Stuckert sobrevoava essa região do estado do Acre, na fronteira com o Peru, quando inesperadamente avistou alguns deles e conseguiu fotografá-los do helicóptero.

Aventurar-se a entrar em contato com outros implica sempre um enorme risco para os poucos indígenas que ainda vivem como seus ancestrais quando os portugueses conquistaram o Brasil há cinco séculos. A inusual visita aconteceu em plena pandemia do coronavírus, que atinge fortemente a Amazônia, pois um dos moradores da aldeia teve sintomas de resfriado, o que alarmou especialistas e ativistas. Se estivesse infectado, todo o grupo correria o risco de ser dizimado.

Um dos índios isolados fotografado no Acre em 2016 durante um sobrevoo. Integrantes do mesmo povo já visitaram um povoado naquela região da Amazônia brasileira, na fronteira com o Peru.RICARDO STUCKERT

O Brasil tem 115 povos isolados contabilizados aos quais reconhece por lei o direito de viver sem contato com outros. Nas últimas décadas, as autoridades só conseguiram confirmar a existência de cerca de trinta dessas comunidades; do resto só têm notícias. Nos últimos anos, coletaram informações sobre eles sem forçar o contato. Mas isso pode mudar à medida que o atual Governo desmantela as instituições que protegem os povos indígenas e o meio ambiente. O desprezo do presidente Jair Bolsonaro pela questão indígena é tal que colocou um policial à frente da Funai, a fundação criada para protegê-los, e um pastor conhecido por evangelizar indígenas no Brasil mais remoto à frente do departamento dos grupos isolados.

O indigenista Carlos Travassos, que foi coordenador de indígenas isolados e de recente contato da Funai, explica em uma entrevista por telefone a relevância da recente interação entre visitantes e anfitriões na aldeia do Acre: “Esses povos têm uma relação de vizinhança, eles se veem na floresta, ou (os isolados) se aproximam da aldeia, observam com curiosidade e às vezes pegam alguma ferramenta, roupas, uma corda, um facão…”. Esse é o padrão, mas desta vez o roteiro mudou. “Porque o primeiro a chegar estabeleceu um contato amistoso, ficou para comer com eles, comeram mandioca”. Depois chegou o resto e, concluída a visita, “foram embora com muitos presentes” para sua aldeia. O especialista diz que esse povo sem nome, às vezes conhecido como cabeludos, vive em enormes ocas comunitárias e cultiva exuberantes lavouras de algodão, batata-doce e banana.

Desta vez a interação terminou pacificamente. Nem sempre é assim. Fugir ou atacar geralmente são as respostas mais comuns dos isolados às tentativas de entrar em contato com eles.

Travassos reclama da falta de presteza com que a Funai encarou a questão, ainda mais com a suspeita de que um dos moradores da aldeia estava com gripe. Ele diz que a instituição deveria ter enviado 48 horas à aldeia uma equipe com profissionais de saúde para submetê-los a observação clínica e intérpretes para saber de suas intenções, falar com o cacique que os recebeu e ver se deixaram objetos. “Essa omissão é contrária a todas as regulamentações do departamento de isolados”, enfatiza Travassos. Quando o jornal O Globo ligou para a aldeia Terra Nova, disseram que uma semana depois da extraordinária visita nenhum enviado da Funai havia chegado até lá.

Depois o órgão afirmou que “uma equipe da Funai está no local verificando as informações” e que “está tomando todas as medidas para protegê-los da covid-19”, mas não quis responder se os índios foram testados para coronavírus ou se algum caso de gripe foi confirmado. O indigenista Travassos avisa: “Tudo leva a crer que o resultado pode ser muito desastroso”.

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