Pai de João Pedro, morto pela polícia: “Os sentimentos do governador não trarão de volta meu filho”

Sem receber contato do Governo de Wilson Witzel após a morte do filho de 14 anos numa operação, Neilton Pinto diz que o assassinato “matou um pai, uma mãe e uma filha”

Neilton e João Pedro, em encontro da igreja da qual faziam parte.Arquivo pessoal/Ponte

O trabalhador autônomo Neilton Pinto, 40 anos, levou longas 17 horas para descobrir o que a polícia havia feito com seu filho João Pedro, 14 anos. O adolescente estava na casa de um primo, brincando, na noite de segunda-feira, 18, no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. João Pedro levou um tiro de fuzil na barriga, durante operação feita pela Polícia Civil do Estado com a Polícia Federal.

Mais informações
João Pedro, 14 anos, morre durante ação policial no Rio, e família fica horas sem saber seu paradeiro
Coronavírus chega às favelas brasileiras com impacto mais incerto que nas grandes cidades
Nas favelas, até a pandemia de coronavírus é invisível

Depois de os policiais invadirem a casa, que fica a um quilômetro e meio de onde o garoto morava com o pai, a mãe e a irmã, de 5 anos, eles levaram João em um helicóptero, conforme os outros jovens relataram a Neilton.

“Fazia um bico ali perto e, quando cheguei, comecei a passar mal. Perguntei para onde levaram. Nada dos policiais falarem o que aconteceu. Só fui achar meu filho no IML (Instituto Médico Legal)”, recorda, nesta entrevista à Ponte.

“Foi a polícia que matou o meu filho. O policial, tenho certeza absoluta, não está dormindo. Está raciocinando [sobre] a besteira que ele fez: tirar a vida de um jovem com futuro brilhante, com muita vontade de viver, de ser advogado, vencer, ser alguém na vida”, afirma.

Questionada sobre a ação, a Polícia Civil do Rio afirmou que a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí sustenta que testemunhas foram ouvidas, bem como os policiais, e laudos serão feitos para “esclarecer as circunstâncias do fato”.

Pergunta. Quais eram os sonhos do João Pedro?

Resposta. O João falava para mim que queria terminar os estudos dele. Tinha um projeto de fazer faculdade de direito, se formar advogado, ter uma vida digna. Era um garoto muito responsável com os estudos, um filho exemplar. Esse era o meu filho. Infelizmente, cortaram esse sonho dele cruelmente. A polícia fez isso dentro da casa do meu sobrinho. Foi isso que aconteceu: tiraram o sonho do meu filho. O João era um garoto 100%, qualquer pai queria ter o João Pedro como filho. Ele estava brincando na casa do primo e outros colegas. Os policiais chegaram de maneira cruel, sem responsabilidade nenhuma, e fuzilaram meu filho.

P. O senhor acredita em justiça?

R. Com certeza vai ter justiça. Ela será feita, eu acredito. A de Deus, principalmente. Esse crime não pode ficar impune. Espero que meu filho seja o último. Temos visto muitos crimes anteriores, espero que essa barbaridade que fizeram com meu filho, uma vítima inocente, um garoto de 14 anos, seja a última. Eles não mataram só o João, mataram o pai, uma mãe, uma irmãzinha de 5 anos.

João Pedro Matos Pinto estava dentro da casa de familiares quando foi baleado.reprodução/Twitter

P. A casa do seu sobrinho fica perto de onde o senhor mora?

R. Fica a um quilômetro e meio de casa. Eu estava bem perto, fazendo um bico com minha cunhada e teve a operação. Blindado, helicóptero, começaram a rodear. Ficamos preocupados, chegamos com todos os garotos no chão, fora da casa, sentados, com vários policiais da COE (Comando de Operações Especiais) ao redor e perguntei: “Cadê o João Pedro?”. Meu sobrinho respondeu: “Foi baleado”. Perguntei para onde levaram. Nada dos policiais falarem o que aconteceu.

P. Quem falou que o colocaram no helicóptero?

R. Os garotos levaram até o campo e botaram no helicóptero. Os policiais nem socorreram, foram os jovens que o colocaram lá. Comecei a passar mal. “Onde levaram?”. Nada de falar o que aconteceu. Só fui achar meu filho no outro dia, 17 horas depois, no IML, morto com um tiro de fuzil na barriga. Não sei se levaram ele, se fizeram socorro. Só sei de uma coisa: ele estava no IML com tiro na barriga.

P. A polícia alega que havia uma troca de tiros. Quem estava na casa contou se houve, de fato, um tiroteio?

R. Nada. Os policiais invadiram a casa. Se tivesse bandido para o lado, como alegaram que estava no quintal, era para o helicóptero dar suporte para a pessoa não fugir e cercarem a casa. Entraram com morador, já atirando. Como quem pulou no quintal fugiu com vários helicópteros dando rasante? Forjaram muitas coisas ali dentro [da casa]. Fizeram uma bobagem, a casa está cravada de bala. Se aquilo foi fora da casa, o tiroteio, por que dentro estava cravado de bala?

P. Deu pra contar quantos tiros?

R. Foi muito tiro, fomos gravar. Tem muita coisa errada. Quando chegamos, minha cunhada disse que ia entrar para pegar documentos e eles [policiais] falaram que não podia entrar. Não teve perícia nenhuma, forjaram coisas. A verdade vai vir à tona, não ficará assim. É só ter paciência agora que as coisas serão esclarecidas. Crime forjado nenhum é perfeito, a mentira não prevalece. Toda mentira sempre tem um rastro. Não tem ninguém perfeito. Pode demorar anos, mas a verdade vem à tona. Só existe uma coisa: ou a verdade ou a mentira.

Os garotos levaram até o campo e botaram no helicóptero. Os policiais nem socorreram, foram os jovens que o colocaram lá. Comecei a passar mal. “Onde levaram?”. Nada de falar o que aconteceu

P. Alguém do Governo de Wilson Witzel ou o próprio governador procurou o senhor ou sua família?

R. Não, o Estado ainda não me procurou. Não falou nada comigo. O senhor governador fiquei sabendo que estava dando uma entrevista por outro motivo e um repórter perguntou a respeito do João Pedro. Fiquei sabendo que ele falou que lamenta pela família, “meus sentimentos”. Os “sentimentos” dele não vão trazer meu filho de volta. A polícia dele que é uma polícia despreparada. O único responsável pela morte do meu filho é o Estado. Foi a polícia que matou o meu filho. A justiça será feita, seja o tempo que for, o quanto levar.

P. Pretende entrar com uma ação contra o Estado?

R. Força para lutar com o Estado, não tenho, mas temos a Justiça. É lenta, sim, mas não adianta ter pressa que não vai trazê-lo de volta, nada vai trazê-lo de volta. Esse policial, não sei qual deles foi, que tirou a vida do meu filho… Tenho certeza absoluta que, com a repercussão que está dando, ele não está dormindo. Está raciocinando [sobre] a besteira que ele fez: tirar a vida de um jovem com um futuro brilhante, com muita vontade de viver, de vencer, de ser alguém na vida. O policial que apertou o gatilho em um menino de 14 anos, que queria ser advogado, ele tirou o sonho do meu filho. Só isso o que ele fez. Tirou o sonho de um rapaz de 14 anos, cheio de projetos, de vontade de viver. Ele não só matou o João Pedro, mas torno a falar mais uma vez: matou um pai, uma mãe, uma filha de 5 anos. Acabou com uma família.

P. Imagina como será quando tiver uma nova operação e o senhor estiver em casa?

R. Quando tiver operação, minha filha de 5 anos vai estar dentro da minha casa, debaixo dos meus braços. Vou proteger. Se a polícia entrar na minha casa para matar, vai ter que atirar primeiro no pai. A filha estará de braço agarrado com o pai. Vai matar o pai e a filha. Quando tiver uma operação, minha filha não vai sair dos meus braços.

Reportagem originalmente publicada no site da Ponte Jornalismo em 20 de maio de 2020.


Mais informações

Arquivado Em