_
_
_
_
Cary Grant

Cary Grant, o revolucionário: LSD para as donas de casa, e a relação que causou estranheza em Hollywood

Há exatos 33 anos morria o ator que foi ícone da elegância, lenda do cinema e fonte de contínuos rumores sobre uma vida que era difícil de entender na era dourada do celuloide

Guillermo Alonso
Cary Grant em 1950.
Cary Grant em 1950.Foto: Getty Images

Cary Grant (Bristol, Reino Unido 1904 – Iowa, 1986) morreu há exatos 33 anos, num dia 29 de novembro, mas nunca deixamos de falar dele. Como ícone de elegância masculina, costuma aparecer em publicações de moda, e como lenda do cinema não deixa de despertar interesse e motivar discursos nostálgicos sobre os bons tempos em que a relação entre os astros, a câmera e o público era muito menos artificial que hoje em dia.

Mas, talvez para seu pesar, grande parte do interesse que Grant motiva ainda se deve à sua vida privada. Há apenas duas semanas a atriz Dyan Cannon (Washington, EUA, 1937), que foi esposa dele durante três anos, na década de 1960, revelava ter rejeitado uma oferta milionária para escrever um livro contando segredos do seu casamento. A oferta, além disso, partiu de Jackie Kennedy, que na última etapa de sua vida trabalhou como editora de livros e conseguiu inclusive convencer Michael Jackson a escrever suas únicas memórias (Moonwalker), em 1987.

“Quase nunca dava entrevistas. E depois que começou a tomar ácido ligou pessoalmente pra a revista ‘Good Housekeeping’ e anunciou: ‘Quero falar sobre isto ao mundo! Mudou minha vida. Todo mundo deveria experimentar” Mark Kidel, diretor do documentário Becoming Cary Grant
Mais informações
O homem que amou Cary Grant
Stanley Donen, o último dos grandes diretores da Hollywood clássica
Um erro que pode custar milhões: o trailer que revelou a reviravolta final do filme mais esperado deste Natal
12 mentiras que o cinema nos impôs e que engolimos sem reclamar

A vida de Cary Grant, que se casou cinco vezes e teve uma filha (justamente com Cannon, hoje com 62 anos) continua sendo alvo de interesse, mais de três décadas depois de sua morte, por causa do abismo existente entre o personagem que conhecemos das telas – elegante, sedutor, seguro de si e com uma sutil veia cômica – e o homem atormentado, rebelde e afeito a riscos que foi na realidade.

Dois fatos chamam a atenção sobre todos os outros: um é a sua relação com o LSD, substância alucinógena que começou a consumir de modo terapêutico – foi uma controvertida moda entre 1950 e 1965 nos Estados Unidos, e hoje estão ressurgindo os estudos que defendem seu uso em microdoses como antidepressivo – e, segundo ele, salvou-o de uma depressão. A infância de Grant foi muito triste: seu irmão morreu muito jovem de tuberculose, seu pai era alcoólatra, e sua mãe era depressiva. Quando Cary tinha nove anos, seu pai mandou sua mãe para uma instituição de saúde mental e lhe disse que ela tinha morrido. No ano seguinte, casou-se com outra mulher. Só depois dos 30 anos, quando já era um astro do cinema, o ator soube que sua mãe continuava viva numa clínica de saúde mental. Grant teve uma infância tão infeliz que, no começo da carreira, preferiu falseá-la e contar que vinha de uma boa família do teatro inglês.

“Cary era um homem muito discreto”, recordou em 2017 Mark Kidel, diretor do documentário Becoming Cary Grant, nas páginas do The Guardian. “Quase nunca dava entrevistas. E depois que começou a tomar ácido ligou pessoalmente pra a revista Good Housekeeping [histórica publicação feminina norte-americana sobre lar, saúde e cozinha] e anunciou: ‘Quero falar sobre isto ao mundo! Mudou minha vida. Todo mundo deveria experimentar’.” Grant de fato concedeu essa entrevista: na página 64 do número de setembro de 1960, uma das maiores estrelas da tela recomendava a todas as donas de casa norte-americanas que começassem a consumir LSD.

Cary Grant, sua esposa, Dyan Cannon, e sua única filha, Jennifer, em uma imagem de 1966.
Cary Grant, sua esposa, Dyan Cannon, e sua única filha, Jennifer, em uma imagem de 1966.Foto: Getty Images

Mas o mistério mais duradouro sobre Grant são suas relações pessoais. Muitos se apressaram em afirmar que era homossexual, incluindo o cafetão Scotty Bowers em seu escandaloso livro de memórias Full Service, e o estilista Orry-Kelly, que afirmou ter tido uma relação amorosa com ele quando o ator era jovem e acabava de chegar a Nova York. Kelly também acrescentou que, naquela época, o ator trabalhava como acompanhante sexual para mulheres ricas. Outros negam: “Jamais vi nenhum sinal disso”, afirmou sua ex-esposa Dyan Cannon. A filha de Cary e Dyan, Jennifer, escreveu em 2011 em suas memórias sobre seu pai: “Se meu pai experimentou sexualmente? Não sei. E eu? Experimentei com minha sexualidade? E você? Se a experimentação fizer alguém ser gay, então acho que quase todo mundo é”.

A orientação sexual de Cary Grant será sempre algo exposto a rumores e interpretações pessoais. Ele mesmo sempre manteve que era um homem heterossexual e, frequentemente, gabou-se disso com senso de humor. “Quando era jovem e muito popular, encontrava meninas com os namorados delas, e quando elas diziam algo bonito sobre mim eles soltavam: ‘É, mas ouvi falar que é bicha’”, contou Grant ao The New York Times numa entrevista publicada em 1977. “É ridículo, mas dizem isso de todos nós [os atores]. Mas devo dizer que esse garoto está me fazendo um favor. Primeiro, está expressando suas próprias inseguranças sobre a garota. Segundo, despertou curiosidade nela a meu respeito. Terceiro, provavelmente essa garota acabará na minha cama para comprovar por si mesma. Por outro lado, sei que um casamento é feliz e seguro quando um rapaz chega e me diz: ‘A minha mulher te adora’.”

A Paramount vendeu à imprensa a ideia de que Cary e Randolph eram dois grandes conquistadores que compartilhavam uma casa que chamaram de “salão dos solteiros”. Para reforçar essa ideia, espalharam notícias sobre senhoritas entrando e saindo continuamente do local

Rumores à parte, é incontestável que Grant dinamitou um monte de convencionalismos sobre como deveria viver e se comportar um grande astro da Hollywood dos anos trinta (cujo estrelato se estendeu até os cinquenta). E isso ocorreu especialmente durante os 12 anos em que viveu com Randolph Scott (Virgínia, 1898–Califórnia, 1987), entre 1932 e 1944. Se existe um rumor persistente que Grant era gay, Randolph Scott é universalmente considerado seu suposto namorado.

Os dois eram atores famosos, jovens e bonitos. Cary era o símbolo da elegância britânica; Randolph, o da masculinidade do caubói (protagonizou faroestes famosos, como Os Conquistadores e O Resgate do Bandoleiro). Conheceram-se em 1932 nos estúdios da Paramount, quando Scott rodava Sky Bride (um drama aéreo com roteiro de Joseph L. Mankiewicz) e Grant trabalhava em Tu És Única. Juntos protagonizaram Sábado Alegre, onde lutavam pelo amor de uma mulher, Nancy Carroll. Logo depois, foram morar juntos numa casa à beira-mar em Santa Monica (Califórnia).

Naquela época os estúdios controlavam cada detalhe da vida de suas estrelas. Que dois artistas da Paramount dividissem casa levantava algumas suspeitas, então a produtora vendeu à imprensa a ideia de que Cary e Randolph eram dois grandes conquistadores que compartilhavam uma casa que chamaram de “salão dos solteiros”. Para reforçar esta ideia, espalharam notícias sobre senhoritas entrando e saindo continuamente do local, e, o melhor de tudo, os dois posaram para uma reportagem fotográfica onde mostravam seu lar.

Vistas hoje, essas imagens parecem alucinantes: numa das eras mais repressivas da história norte-americana, Cary e Randolph posam em sua casa… como se fossem um casal romântico. Algo que obviamente não era a intenção então, e que somente o tempo e nosso olhar, diferente hoje do que era há oitenta anos, criou. Mas a releitura contemporânea das imagens é impactante e inegável: Cary e Randolph jantando à luz de velas. Cary e Randolph posando com um poodle. Cary e Randolph cozinhando e lavando os pratos. Cary tocando piano enquanto Randolph lê uma partitura para ele. Cary e Randolph jogando bola em trajes de banho. Cary e Randolph fazendo ginástica juntos. Comprove você mesmo:

Cary Grant, de pé, e Randolph Scott posam na casa que compartilharam em Santa Monica.
Cary Grant, de pé, e Randolph Scott posam na casa que compartilharam em Santa Monica.Foto: Getty Images
Cary Grant, sentado, e Randolph Scott posam na sala da casa que compartilharam durante 12 anos em Santa Monica.
Cary Grant, sentado, e Randolph Scott posam na sala da casa que compartilharam durante 12 anos em Santa Monica.Foto: Getty Images
Cary Grant e Randolph Scott posam no jardim de sua casa em Santa Monica.
Cary Grant e Randolph Scott posam no jardim de sua casa em Santa Monica.Foto: Getty Images
Cary Grant e Randolph Scott jantam na sala de sua casa em Santa Monica.
Cary Grant e Randolph Scott jantam na sala de sua casa em Santa Monica.Foto: Getty Images
Cary Grant e Randolph Scott.
Cary Grant e Randolph Scott.Foto: Getty Images
Cary Grant e Randolph Scott fazem ginástica juntos.
Cary Grant e Randolph Scott fazem ginástica juntos.Foto: Getty Images

Os dois se casaram várias vezes, claro. Em 1934, enquanto morava com Randolph, Cary se casou com uma atriz chamada Virginia Cherrill. Os rumores eram de que tinha sido exigido pela Paramount (era habitual na era dos estúdios que estes impusessem casamentos por motivos de marketing, e não necessariamente para ocultar uma suposta homossexualidade). O matrimônio durou sete meses: ela alegou que Grant bebia demais, tornava-se abusivo e discutiam sem parar. Ao divorciar-se, ele voltou a morar com Randolph na casa de Santa Monica. Durante esses 12 anos de convivência intermitente, ele ainda se casaria com uma rica herdeira, Barbara Hutton, em 1942. Desta vez a união durou um pouco menos de três anos.

Como se fosse pouco, em 1938 Cary Grant protagonizou um clássico do cinema em que popularizou a palavra gay. O termo gay é relativamente novo: ninguém dizia que Cary e Randolph eram gays, porque essa palavra não existia com esse significado naquela época. Chamavam-nos, no máximo, de fags (bichas). Gay em inglês serve para denominar alguém alegre, hedonista, despreocupado. Seu uso para referir-se a um homem homossexual só começou a se popularizar nos países anglo-saxões na década de 1960. Mas quando o escutamos pela primeira vez, com esse uso concreto, foi na boca de Cary Grant.

Um último detalhe transformou seu relacionamento, fosse da natureza que fosse, em algo com uma conexão que parece superar o terrestre: Grant morreu em novembro de 1987, e Scott apenas três meses depois, em janeiro de 1988

Em Levada da Breca (1938), há uma cena em que Katharine Hepburn rouba a roupa de Grant enquanto este está tomando banho, e ele se vê obrigado a vestir a única coisa que resta no banheiro dela: uma bata de seda com plumas. A estampa não destoaria hoje num desfile do desenhista Palombo Spain, mas, naquela época, tinha apelo cômico: um homem vestido de mulher era algo muito engraçado de se ver. Ao ser descoberto em trajes femininos, e perguntado pelo motivo, ele responde: “De repente fiquei gay!”. É a primeira vez que a palavra gay, com esse significado, é usada na tela.

Independentemente de se ele era ou não, a atitude de Grant foi incrivelmente livre para aquela época. Se era gay, teve a coragem de ir morar com outro homem numa época em que nenhum ator de Hollywood o faria. Se não era, teve a coragem de brincar com isso e rir dos rumores em episódios como o de Levada da Breca. Se era bissexual, ou se simplesmente teve curiosidade de experimentar, lidou com isso usando uma assombrosa sutileza para não deixar de trabalhar e manter o carinho de milhões de fãs mais conservadores.

Cary e Randolph deixaram de viver juntos em 1945. Diz-se que mantiveram a amizade. E um último detalhe transformou seu relacionamento, fosse da natureza que fosse, em algo com uma conexão que parece superar a esfera terrena: Grant morreu em novembro de 1987, e Scott apenas três meses depois, em janeiro de 1988.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_