Uma aposta pela “desfronterização” do território artístico
Na 14ª Bienal de Arte Contemporânea de Curitiba se fala espanhol
Chang nasceu em Taiwan. Davide nasceu em Milão. Patricio nasceu em Arica (Chile). Moradora do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, desde os 12 anos, Chang Chi Chai viu o recente falecimento de seu progenitor como um sinal: “Nesse momento senti que havia chegado a hora de construir uma ponte entre meus 2 “eus”, o brasileiro e o chinês”. Patricio Farías, desenhista, gravador e escultor, com casa em Barcelona e Viamão, perto de Porto Alegre, fugiu de seu país com a chegada do fascismo para nunca mais voltar. “Saí de Pinochet para cair nos braços de Bolsonaro”, diz com ar resignado. Davide Boriani, ilustre desconhecido da arte cinética, está “há mais tempo do que pode se lembrar” morando em Curitiba. “Se eu não fosse um velhote”, reconhece, “voltaria à Itália agora mesmo”. Tem um bom motivo para fazê-lo: “aqui não há maneira de encontrar os ingredientes que preciso para meus embutidos”.
Chang, Patricio e Davide têm algo em comum: os 3 participam com sua obra da 14ª Bienal de Curitiba, com outros 459 artistas provenientes de 45 países nos 5 continentes. O tema, “Fronteiras em Aberto”, explicita o caráter de uma mostra que, em sua atual edição, reflete sobre o artista transfronteiriço, a identidade compartilhada, o destino como imposição: “A ideia de fronteira já não pertence só ao território, faz parte de um universo maior”, diz Adolfo Montejo (Madri, 1954), curador titular da bienal, ao lado da brasileira Tereza de Arruda. “Estamos em uma nova situação de refronteiras e desfronteiras, de novos agrupamentos socioespaciais, assim como de novas experiências artísticas de arte-fronteira”.
Longe dos gestos grandiloquentes comuns em outras mostras/bienais, a 14ª Bienal de Curitiba aposta em uma sutil leitura crítica/hiperbólica do momento, como na obra perturbadora da videoartista alemã Hito Steyerl (“Factory of the sun”). A mostra se esparrama pela arrumada capital paranaense, seus museus e galerias artísticas e até os terminais urbanos da cidade redecorados para a ocasião. A surpresa, o sobressalto estético, surgem aos olhos do espectador.
Imprescindível a visita ao apolíneo Museu Oscar Niemeyer (MON), com uma ampla mostra artística dividida entre o edifício-base e a torre-olho que o preside, incluindo várias exposições dedicadas aos artistas chineses, russos, sul-africanos, indianos e brasileiros, aproveitando o encontro dos Ministros da Cultura do BRICS realizado na cidade.
Não menos interessantes/recomendáveis, as visitas ao Museu Paranaense (Mauro Espíndola, “Animalis Imaginibvs”), Museu de Arte Municipal (“Poema-Processo, A Última Vanguarda”) e o Centro Cultural BRDE – Palacete dos Leões (“Pangrafias”).
A embaixada espanhola/de língua espanhola na 14ª Bienal de Curitiba é ampla e diversa: do poeta visual e enxadrista Eduardo Scala ao discutido e indiscutível Joan Brossa, passando por Juan Luis Moraza, autor de um Calendário de Dias de Trabalho panorâmico que não deixa ninguém indiferente; além dos chilenos Patricio Farías e Nicanor Parra, criador da antipoesia, considerado pelo recentemente falecido Harold Bloom como “o melhor poeta do Ocidente”... as obras representadas abrangem todos os gêneros artísticos definidores da pós-pós-modernidade, incluindo os mais inclassificáveis, como o aforismo e a ironia entendida como um gênero em si mesma (mas a mão do curador deve ser notada em algo). Exemplo dos últimos, os hilariantes “3 equipamentos 3” de Patricio Farías expostos no Museu de Arte Municipal...
“Se sente estúpido, néscio, incapaz?... não consegue ver o significado oculto das propostas das vanguardas?... Com o equipamento ENTENDERE-ME-NOW poderá falar com as mesmas palavras dos mais renomados críticos de arte internacionais. Instantaneamente!”.
Na parte da heterodoxia (heterodoxia dentro da heterodoxia, pode-se dizer), o show de sinos-performance oferecido pelo espanhol Llorenç Barber (Ayelo de Malferit, 1948) simultaneamente nas igrejas de São Francisco das Chagas, Rosário, Redentor e Catedral Basílica, com o qual a bienal foi inaugurada. “Um espetáculo catártico”, como disse a imprensa, capaz de reunir multidões apesar de ser cedo (8h40) e a persistente garoa.
Outro da mesma estirpe, o alagoano Hermeto Pascoal tem seu próprio espaço – “Hermeto Pascoal – Ars Sonora” – aberto à visitação no saguão do Centro Cultural Teatro Guaíra; o mais visitado de todos os que fazem parte da Bienal. É compreensível, afinal o prolífico/irresistível cantor e compositor possui um barulhento fã clube na cidade que foi a sua durante 12 anos. É uma mostra transfronteiriça no mais estrito sentido do termo: a música – a partitura – adquire uma dimensão pictórica ao mesmo tempo em que o objeto se transforma, ao contato com a escrita musical, em som imanente, pode ser uma peça de cerâmica como uma privada e um porco de plástico simbolizando os outros porcos que Hermeto costumava levar consigo em seus shows, até ser proibido pela rígida lei alfandegária da UE (os porcos europeus não soam da mesma forma).
A 14ª Bienal de Curitiba iniciou em 21 setembro e segue até março de 2020.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.