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Hermeto Pascoal: “Miles Davis me chamou para lutar boxe e lhe dei um cruzado em pleno rosto”

Em entrevista, o multi-instrumentista brasileiro conta sobre o dia em que conheceu o gênio norte-americano e como a música o faz um homem feliz

Hermeto Pascoal em festival de Blues e Jazz em São Paulo.
Hermeto Pascoal em festival de Blues e Jazz em São Paulo. Instagram/ Reprodução

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Uma entrevista com Hermeto Pascoal se sabe quando começa, mas não quando acaba. Nem como. Ingovernável, loquaz, o entrevistado envolve o entrevistador em um estado de arrebatamento alucinógeno, ou algo assim, quase sem dar tempo para respirar; no final, o bruxo conduz a conversa ao seu terreno. Paco de Lucía, por exemplo. Bem pensado, por que não? “Paco e eu éramos fãs um do outro”, começa dizendo. “Nós nos conhecemos em um festival no Sul da Espanha. Ele estava ensaiando com seu grupo e eu me sentei para ouvi-lo”. O próximo encontro nos camarins significou o começo de uma velha amizade. “Nunca toquei com ele, por respeito”, diz Hermeto. “Eu lhe disse: “Paco, gosto tanto de você que não quero tocar contigo”. E ele entendeu. Se tocássemos juntos, certamente teria saído algo artificial, sem nenhum sentido”. Para o brasileiro, o violonista era a encarnação do “músico universal”, entenda-se como tal aquele que compõe uma música com denominação de origem e vocação de universalidade. “Quando falo de “música universal”, diz Pascoal, “falo da que é feita a partir do que a pessoa é e ouve. E eu ouço muitas coisas, também música espanhola. Por isso, toco quando me dá na telha e nunca me censuro. Se me chamam dos Estados Unidos para tocar em um festival de jazz, pois muito bem, mas conste que o que eu faço é “música universal”: esse é o meu jeito”. Dito isso, ele muda o rumo da conversa: “eu já lhe contei que sou doutor?”; por acaso o mais cosmopolita dos músicos brasileiros em exercício acaba de voltar de uma viagem pelos Estados Unidos com surpresa incluída. “Fui a Boston e me levaram a sei lá qual universidade em que me nomearam doctor honoris causa, então sou doutor: olha a minha importância”.

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A acidentada biografia do doutor Pascoal, vejam vocês, começa com o erro de um funcionário do cartório pouco aplicado ou, quem sabe, duro de ouvido, o que explica o fato de que a criança tenha sido registrada com o nome escolhido por seus progenitores – Hermeto – seguido pelo nome paterno – Pascoal –. Ninguém se lembrou de colocá-lo um sobrenome. “Desde que nasci me olham como se fosse estranho, mas eu não faço nada que qualquer um não faça. Às vezes, a vaidade e o orgulho fazem com que não percebamos o quanto nós seres humanos nos parecemos. Eu acredito na semelhança, mas não somos 100% semelhantes, isso seria espantoso: 10% já é suficiente”.

A infância de Hermeto Pascoal são lembranças de um coqueiro às margens do lago, o canto dos pássaros e o som de um pífano. “Eu sempre digo que sou 100% intuitivo, porque aprendi experimentando as coisas que me vinham à cabeça enquanto ouvia os pássaros cantando...”. Ele tinha certeza de uma coisa: “nunca tive a menor dúvida de que queria ser músico”.

Hermeto começa a percorrer o Nordeste do país tocando sanfona em casamentos, batismos e comunhões com seu irmão, José Neto. O também sanfonista Sivuca é seu mentor entre as plateias nordestinas, em inusitada confluência de sanfonistas albinos que seria depois referendada com o disco que os dois gravaram de capa indescritível. O ritmo é o forró, a festa... “a palavra forró vem de farra, de festa... não é um ritmo e sim uma maneira de fazer que envolve tudo, porque tudo, incluindo o chorinho, o maracatu e o frevo, é forró”.

Do Recife ao Rio de Janeiro

Hermeto prova as delícias da boemia carioca em decadência, funda o Quarteto Novo, viaja a Nova York. A especificidade da proposta do músico, tão deslocada no Brasil do final dos anos sessenta como no atual, precisava ser validada fora do país. E, para ele, só existe um destino possível: a Grande Maçã. “Cheguei em Nova York sem falar uma palavra de inglês e sem conhecer ninguém, com exceção de Airto Moreira”.

Hermeto começa indo a um show do percussionista, com o trompetista Miles Davis como artista convidado. Como se costuma dizer, rápido e rasteiro, ou algo assim. “Estava esperando para entrar na casa de show quando atrás de mim surgiu um homem e me dá um toque no ombro, e me diz algo que não entendo... pensei que era um cara me paquerando e me livrei dele como pude. Até que, por fim, pude entrar e vi Airto no palco falando com ele. Então perguntei: “Ei Airto, quem é esse cara?”. Ele me olhou como se eu fosse um extraterrestre: “É o Miles Davis!”.

Duelo de titãs

O encontro nos bastidores, ao final do show, serve para esclarecer qualquer mal-entendido. “Pude ver que era um cara legal que dividia comigo a mesma religião da música”. Miles acabaria convidando o recém-chegado a sua casa. Hermeto, mesmo com receios, aceita. “Miles tinha uma casa “elegantíssima” em um bairro muito chique. Ele tinha 45 anos, eu 34. Tinha saído do vício das drogas e estava limpo”.

Mas nem tudo será tão fácil. Miles começa submetendo seu convidado a algo que se parece muito com um ritual de iniciação. “A primeira coisa que fez foi me perguntar: “você tem ouvido absoluto?” (nota ao final do texto). Aí tocou uma nota e eu lhe disse: “si bemol”. Depois tocou outra, e outra, e me dizia: “agora toca um fá sustenido”, e eu assobiava a nota que ele me pedia, ou cantava: “a nota que você quiser, me diga e eu a canto”.

Hermeto passou no primeiro teste, mas ainda restava a prova definitiva. “Quando ele comprovou que eu não era uma fraude, relaxou e começou a me falar do quanto gostava de boxe, que até tinha um ringue ali, no meio da sua casa. Miles realmente sabia boxear, tinha professores que iam vê-lo uma vez por semana, levava muito a sério. E aí ele me diz: “se você tem coragem, lute comigo”. Eu pensei: “será que nossa amizade já é tanta para lutarmos boxe?”. Mas enfim, aceitei o convite, tirei a roupa, coloquei as luvas, e subi com ele no ringue”.

O combate improvável entre os dois gênios da música iria ocorrer de acordo com as mais estritas regras do acaso. “Não sei se você percebeu, mas meus olhos têm vida própria, o que quer dizer que um aponta para um lado e o outro, para o contrário. Disse a mim mesmo: “vou aproveitar esse dom que a natureza me deu”. Como bom boxeador que era, Miles tinha seu olhar fixo em mim, mas não percebia que, enquanto meu olho direito acompanhava a direção de seu olhar, o outro olhava em direção ao restante de seu corpo, que estava desprotegido. Então lhe dei um cruzado que lhe acertou em pleno rosto; pensei: “toma essa, almofadinha...” ficamos amigos.

Em 3 de junho de 1970, Hermeto Pascoal e Miles Davis foram ao “Estúdio B”, no segundo andar do edifício Columbia, em Manhattan, para gravar 2 composições originais do primeiro: “Igrejinha” (traduzida como “Little Church”), e “Nem Um Talvez” versus “Selim”. O disco com as duas músicas foi lançado em novembro de 1971 com o título um tanto inquietante de “Live-Evil”. Surpreendentemente, ou nem tanto, na edição original do mesmo, a autoria das duas canções é atribuída ao próprio Miles Davis; para Pascoal, um detalhe sem importância. “Sei que Airto falou com ele do assunto, e depois Herbie Hancock e Wayne Shorter, mas eu não o fiz, para que? Miles era uma pessoa elegante, um ricaço, tinha tudo o que queria, então não faria algo assim por dinheiro, muito menos por vaidade, e também não acho que fosse capaz de fazê-lo somente para causar discórdia. Se ele disse que a música era sua, então era sua”.

Preparado para a batalha

Hermeto terminaria voltando ao Brasil, a seu bairro de Bangu, no Rio de Janeiro, os projetos, vários, de se reunir com Miles Davis não deram em nada, “eu não posso nesse momento, agora sou eu que não posso, e aí chegou sua hora e tudo se acabou”. Sua aventura com Aline Morena, a contestada “Yoko dos Pampas”, 43 anos mais jovem, terminou em empate técnico e com a cantora o acompanhando em suas turnês. “E o que tem isso de estranho? Somos amigos e nos entendemos no palco, por mim tudo bem”.

Hermeto, se sabe, cresce no corpo a corpo. Para demonstrá-lo, suas polêmicas, profusamente divulgadas pela imprensa, com o establishment musical – a MPB –, o grupo “dos baianos” (Caetano Veloso & Gilberto Gil) e até mesmo seu próprio público, na homenagem recebida em seu feudo de Bangu, quando completou 75 anos de idade. É que o doutor Pascoal quer ser levado a sério. “Eu sei que existem músicos de minha idade que pensam que estou louco porque toco piano daquela forma e, sim, pode ser que eu faça o que me dá na telha, mas, sempre, minha música é muito trabalhada”. A “lenda negra” de Hermeto Pascoal leva a tais percepções errôneas. Falamos de alguém capaz de enfrentar o desafio de escrever uma música por dia durante um ano ou morrer tentando (“Calendário do Som”, Editora Senac, 2000): “tenho permanentemente 3 ou 4 músicas dando voltas em minha cabeça, e é por isso que escrevo em qualquer coisa ao meu alcance, pode ser uma parede, um guardanapo e um rolo de papel higiênico que, evidentemente, adoro. Tenho certeza que Mozart o teria utilizado se o conhecesse”. É essa necessidade convulsiva, irrefreável, de criar, que leva o alagoano a editar seus discos de 2 em 2, como “Hermeto Pascoal e sua Visão Original do Forró”, gravado em 1998 e editado em 2018 com o consentimento de seu autor e um variado repertório 100% festivo; e “Natureza Universal”, em formato de big band; um disco comedido para os padrões “herméticos”, e uma amostra afinada do Hermeto Pascoal mais jazzístico. Além desses lançamentos está para ser publicado o livro escrito pelo espanhol, morador de Foz do Iguaçu, Adolfo Montejo, primeiro que é dedicado ao artista: “Hermeto. Ars Sonora”. “Adolfo me levou a um museu para mostrar meu trabalho poético, e tinha minha própria sala chamada “Som de Aura”, lembra, não sem orgulho, o interessado. “Foi tanta gente que não dava para andar enquanto as outras salas estavam meio vazias”.

Hermeto Pascoal tem 82 anos e toca o que tiver pela frente, seja líquido, gasoso, objeto inanimado e que se move. Além disso, é algo que pouquíssimos são: um homem feliz. E quer que também seja quem o ouve. “A música é o que é gostoso na vida, não importa se você é pintor ou jogador de futebol: tudo o que é bom, é música”.

Nota – O ouvido absoluto se refere à habilidade de identificar e reproduzir uma nota sem a ajuda de uma nota referencial.

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