Princípio e fim da lenda de Prince em sua biografia inacabada

As memórias que o músico deixou sem terminar vêm a público nos EUA. Um jornalista escolhido pelo artista completou uma história centrada em sua juventude e em seus últimos anos

Prince toca guitarra na cama em 1986.JOSEPH GIANNETTI (CORTESÍA PENGUIN RANDOM HOUSE)

Os fãs não se surpreenderão: o “livro de Prince” teve uma gênese tortuosa e revela-se como um texto inclassificável. Conclui-se assombrosa a sua mesma existência. Um artista que era o paradigma do mistério anunciou em 2014 que planejava escrever suas memórias. Como é costume nos livros de famosos, leiloaram-se os direitos e a Random House ficou com eles. Mas o caminho até The Beautiful Ones (disponível em inglês na Amazon) resultou longo e tortuoso.

Editorial e artista coincidiram em que era necessário um ghost writer para ajudar na sua elaboração. Da lista de possíveis candidatos, Prince elegeu o mais improvável: Dan Prieperbring, um fã sem obra publicada. Como principal mérito, Piepenbring trabalha na The Paris Review, publicação literária de trono; não consta que Prince (Minneapolis, 1958 — Chanhassen, 2016) tivesse chegado ao folheá-la.

Piepenbring estava habituado a tratar com pesos pesados do mundo da cultura, mas entrar no universo Prince supôs um choque. Os protocolos de segurança que deixavam no ar a hora prevista para qualquer encontro, os telefonemas inesperados a partir de um telefone fixo, os jogos mentais que pareciam buscar suas debilidades.

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No início, tudo eram dificuldades: Prince detestava que se usassem palavras como “alquimia” ou “magia” para descrever seu processo criativo. De fato, tratam-se de metáforas muito clichês, mas as objeções de Prince obedeciam a motivos religiosos: como testemunha de Jeová, esses conceitos são diabólicos. No entanto, segundo ia tratando com Piepenbring, foi se animando. Seu livro não seria uma mera biografia de famoso: pretendia surpreender por sua forma e seu conteúdo. Também aspirava a acabar com o racismo e modificar as relações entre os artistas e as discográficas. Em um momento de entusiasmo, até decidiu que publicaria vários livros.

Como sabemos, esses planos ficariam adiados sine die. A morte de Prince em 21 de abril de 2016 mudou sua percepção pública: alguém que reprovava as drogas recreativas, secretamente havia se feito adito ao fentanilo, um potente opioide comercializado como analgésico. Para compensar, seus herdeiros mudaram sua política digital: em vez de perseguir o uso de sua música, seus vídeos e inclusive as fotografias que subiam seus fãs, permitiu-se que todo mundo manifestasse seu pesar pondo em circulação todo tipo de material. Literalmente, da noite para o dia, a rede encheu-se de gravações de Prince.

Por questões de liquidez, o banco que gerenciava seu legado fez questão de monetizar seu legendário arquivo, que contém centenas de horas de música inédita. Já saíram Piano and a Microphone 1983, a recopilação Originals (suas interpretações de composições que cedeu a outros artistas) e a versão ampliada de Purple Rain. De rebote, reavivou-se o projeto da autobiografia.

O problema: Prince só tinha redigido 28 páginas, com sua particular ortografia, que chegavam até meados dos anos setenta. Convidou-se então Dan Piepenbring para que revisasse os armários e gavetas, inclusive a caixa forte, de Paisley Park Studios, o quartel-general de Prince. E o desolado biógrafo foi achando tesouros: desenhos, rascunhos de letras, documentos, fotografias e até uma sinopse do roteiro para Baby I’m a Star, depois estreada como Purple Rain.

Assim se conseguiu que o manuscrito de 28 folhas se convertesse numa obra de 280 páginas. Não diremos que “magicamente”: o processo foi laborioso. Piepenbring complementa a narração com fragmentos de entrevistas (sim, teve uma época em que Prince se deixava entrevistar e se mostrava franco em suas declarações). O livro é aberto com uma minuciosa crônica da relação de Piepenbring com o artista. Tudo muito tortuoso: o escrevinhador era convidado a viajar para a Austrália, onde enlanguescia no quarto do hotel, sem a segurança de ver o seu patrão (finalmente, sim se encontraram).

Em The Beautiful Ones encontramos dois retratos de Prince. Primeiro, tal como era em seus anos finais. Belicoso com a indústria do entretenimento mas depois feliz de contratar um cinema para poder ver —com pipocas!— a última edição de uma franquia de Hollywood como Kung Fu Panda. Farto de artistas leves como Katy Perry ou Ed Sheeran e empenhado em reivindicar a negritude do funk. Obcecado por resguardar-se: negociou a possibilidade de retirar o livro do mercado caso mudasse de opinião sobre sua oportunidade.

Prince, falando ao telefone em 1985.ALLEN BEAULIEU (CORTESÍA PENGUIN RANDOM HOUSE)

Sem conflitos raciais

Contudo, o principal atrativo de The Beautiful Ones reside no perfil do jovem Prince. Em sua lembrança, a Minneapolis onde nasceu era uma cidade afável, sem demasiados conflitos raciais. Seu principal afã consiste em corrigir a imagem de seus pais, tal como ficou fixada em Purple Rain. A mãe não é agora uma santa sofredora; conta que até lhe subtraía as pequenas poupanças quando queria ir a uma festa. O pai era operário em uma fábrica de plásticos e, ao mesmo tempo, dirigia um grupo de jazz ligeiro. Um homem religioso mas tolerante: após o ofício dominical, levou seu filho para assistir Woodstock, o documentário sobre o festival.

A narração resulta incompleta. Quando os pais se divorciam, vive com um e outro antes de terminar alojado com a família de um futuro colaborador, André Cymone. Se teve traumas, deixa isso em aberto. Igualmente com a descoberta do sexo, embora venha a lamentar que seu padrasto, em vez da tradicional conversa de homem a homem, o tenho levado para assistir um filme pornô. Claro que a alternativa de Prince para a educação sexual também não parece muito prática: “Ler o Cântico dos cânticos [da Bíblia hebraica, que celebra o amor sexual] e debatê-lo com alguém querido, e se possível, alguém de mais velho”.

“Minha voz é um dos instrumentos a mais que eu toco”

Prince explica que inicialmente quiseram lançá-lo como mero cantor. Negou-se: "Eu me via como um instrumentista que começou a cantar por necessidade. Minha voz é mais um dos instrumentos que toco", pode ser lido em The Beautiful Ones. Assim, aguentou até que a Warner cedeu a sua exigência: auto-produzir-se, gravando todos os instrumentos. Um inconveniente era que sua música requeria metais. Resolveu o assunto "criando uma seção de vento com várias pistas de sintetizador e algumas frases de guitarra".

Foi guiado por uma férrea confiança em si mesmo: não estava intimidado pela formidável música que tocava nos anos setenta (“Sentia mais respeito que pasmo”) .

E soube modificar suas propostas criativas: "Quando comecei, me atraíam as mesmas coisas que à maioria das pessoas neste negócio. Queria impressionar meus amigos, queria ganhar dinheiro. Durante um tempo, era um hobby. Depois transformou-se num trabalho, uma maneira de ganhar meu pão. Agora o vejo como arte".

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