Do que eu falo quando falo com meu filho de cinco dias
No segundo capítulo do 'Diário de um pai recém-nascido', digo a Lucas que decidi escrever um livro sobre ele, sobre mim, sobre nós, que já estou escrevendo, estamos escrevendo
Nunca consegui falar com crianças como se elas fossem apenas crianças. Me parecia bobo, porque eu sempre achei que também parecia bobo para elas que um marmanjo falasse como um… bobo. Então pergunto sobre sua última viagem a Paris, cujas imagens eu pude conferir no Instagram (dos pais deles). Pergunto o que têm visto no celular, qual sua animação hipnótica favorita, onde comprou uma mochila tão estilosa e qual é seu melhor carrinho. Como vai a família? Onde foi parar o seu dente? Como foi a mudança? Homem-Aranha ou Batman? A favor ou contra a reforma da Previdência? É claro que com o meu próprio filho não seria diferente. Era de se esperar, também, que apesar de ele ter apenas cinco dias de vida, os papos seriam bem mais profundos. Como seria possível, senão na base da conversa, aprender junto com o bebê a pegar direito no peito na hora de mamar — ou pelo menos ajudar a mamãe a relaxar durante o desafiante processo? É por isso que o casal ofereceu a Lucas desde sua primeira mamada um exclusivo Colostrino, o cappuccino de colostro servido pela mãe a cada três horas durante os primeiros dias de vida, quando o leite materno ainda não chegou. Reclamações? Favor encaminhar para o SAC, Serviço de Atendimento do Colinho. Ainda mais depois que a mãe recebeu alta do hospital antes dele e o quarto da maternidade passou a tê-lo como titular, o poderoso chefinho, como se o bebê precisasse de mais alguma justificativa para mandar, como se não entrasse no quarto chutando tudo, derrubando mesas e cadeiras em busca do peito e, após três ou quatro sugadas, não fechasse os olhos placidamente como se nada tivesse acontecido e não precisasse ser acordado para seguir a refeição. A estadia no hospital foi prolongada para ele tomar dois dias de banho de luz contra icterícia, gerando na família o receio de ele deixar o berçário com o bronzeado de Donald Trump — too much winning. Também já conversamos sobre um tubo de álcool gel fantástico que eu comprei junto com os remédios para sua mãe se recuperar, um potinho bem pequeno, portátil, com uma capinha inevitável e irresistível de bola de futebol, que na minha cabeça vai me manter sempre disponível para pegar nele enquanto estiver assim, novinho, mas também na moda, porque vai pendurado na mochila — eu tenho, e você não tem. Ele ainda não me falou muito sobre si mesmo, vou tentando descobrir sozinho por enquanto, mas me fez perguntar sobre mim. Para onde vou, de onde vim, de quantas horas de sono por dia um adulto precisa, coisas assim. Me fez querer dizer a ele, só para jogar conversa fora, que, se eu pudesse escolher ser um escritor, seria Albert Camus, para dizer muito com poucas palavras (e ser galã também, claro — nada pessoal, Sartre), ou Italo Calvino, para ser profundo e muito divertido ao mesmo tempo, mas não Dostoiévski, Proust ou Kafka, porque, apesar de ser genial, eu também teria de ser epilético, ter a saúde debilitada a ponto de não conseguir sair de casa ou ter sido esmagado espiritualmente pelo meu pai. Michel Houellebecq seria a opção viva entre os desejos, desde que eu não tivesse que me fumar inteiro. Karl Ove Knausgård seria outra opção, mas sem mostrar tanto as pernas. Também quero dizer que já decidi escrever um livro sobre ele, sobre mim, sobre nós, que já estou escrevendo, estamos escrevendo. Ainda no hospital, de passagem pela TV5Monde, que exibia reportagem sobre os coletes amarelos, aproveitei para dizer que os franceses vivem queimando carros, máquinas produzidas pelos chineses sob os olhares desconfiados dos norte-americanos. Os olhos de Lucas me indagam se os carrinhos de bebê estão incluídos entre os potenciais alvos dos revolucionários. Respondo que os bebês começam queimando os próprios carrinhos na França. Bebês franceses não fazem manha, fazem greve. Outra informação importante no âmbito geopolítico é que a família se posiciona contra os coques samurai e as bandanas em geral. Em relação às demais questões políticas, a gente conversa e se entende. Eu não sei dizer exatamente o que ele apreende de tudo isso, mas me satisfaço com a impressão de que Lucas se acalma ao ouvir a minha voz — quem cometeria a covardia de me desmentir? E basta sua mãe implorar para parar de rir, por conta da dor nos pontos que carrega no ventre, para eu saber que nosso papo valeu a pena.