Na Bienal de Veneza, os corpos brasileiros que dançam (e batalham)
'Swinguerra', filme da dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, representa o Brasil nesta edição da mostra
A névoa que preenche o entorno da 58ª edição da Bienal de Veneza — parte da obra da artista Laure Provoust no Pavilhão Francês — chega a soar como uma alegoria simplista dos tempos atuais, na tentativa da arte de dar conta das inúmeras questões impostas por um caótico cenário global.
Para a edição deste ano da mais antiga bienal do mundo, o curador norte-americano Ralph Rugoff elegeu como mote o dúbio provérbio chinês "Que você viva em tempos interessantes" (May you live in interesting times) para reunir, na mostra central, obras de cerca de 80 artistas, de 38 países. As temáticas abordadas, como de se esperar, orbitam em torno de tópicos que vão das fake news a crise dos refugiados, da questão climática ao levante global do conservadorismo.
Apesar de nenhum artista brasileiro ter sido convidado para a mostra de Rugoff, o Pavilhão Brasileiro, no Giardini, preencheu bem tal lacuna representativa. O curador espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, responsável pela controversa última edição da Bienal de São Paulo, em 2018, recrutou a dupla de artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca para ocuparem o Pavilhão com Swinguerra, novo filme comissionado para a ocasião.
Para aqueles familiarizados com o cenário da arte contemporânea brasileira, os nomes de Bárbara e Benjamin não soarão estranhos. A brasiliense, radicada no Recife, e o alemão, também baseado na capital pernambucana, são conhecidos por pesquisarem as complexas relações entre manifestações culturais populares, identidade, corpo e gênero.
Suas pesquisas desdobram-se em filmes e fotografias que investigam fenômenos que vão do brega-funk a indústria musical do gospel na Zona da Mata de Pernambuco. São curta-metragens híbridos, cuja peculiaridade de linguagem é tamanha que facilmente escapam às definições usuais de gênero. Trabalhando em regime colaborativo com seus retratados — e junto deles tomando as decisões que definem os rumos e o próprio resultado final da obra — Wagner e de Burca instauram um terceiro lugar entre o ficcional e o documental, convidando o espectador a se colocar diante de corpos e subjetividades usualmente marginalizadas ou arquetipadas pelos discursos hegemônicos.
Em Swinguerra, a dupla apresenta o resultado de sua pesquisa iniciada em 2015, em torno da swingueira pernambucana. Fenômeno cultural periférico, a swingueira pode ser definida como uma singular deglutição de elementos e signos oriundos do brega pernambucano, do axé baiano, do funk carioca e mesmo do pop norte-americano. Para o filme, Wagner e de Burca escolheram trabalhar em parceria com três companhias de dança — Cia. Extremo, La Máfia e O Passinho dos Maloka. Em comum, as três compartilham seu método de trabalho: ensaiam seus números rigorosamente, ao longo do ano, para apresentá-los em competições locais e intermunicipais, nos arredores de Recife.
O filme acompanha os ensaios das três companhias utilizando como pano de fundo a quadra esportiva e os arredores de uma escola municipal fundada como um CAIC (Centro de Atenção Integral à Criança). Projeto do Governo Collor, na década de 90, os CAICs são espécie de filhotes do modelo educacional dos CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), idealizados por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro. Enormes complexos educacionais cujo projeto arquitetônico — assinado por João Filgueiras Lima, o Lelé — evoca as formas geométricas da bandeira brasileira, hoje a maior parte dos CAICs funcionam como escolas municipais de estrutura precária. Por entre o concreto armado, típico dos projetos de Lelé, e o verde-amarelo desbotado das ruínas desta utopia educacional, acompanhamos estes jovens — em sua maioria negros de identificação não-binária de gênero — alongando seus corpos dançando, em coletivo.
São corpos autorregulados que organizam-se entre si para executar coreografias cuja complexidade e precisão dos gestos oscilam entre o swing e a rigidez, a dança e a batalha. Não à toa, o trabalho da dupla encontra uma interessante interlocução com as ideias do teórico Andre Lepecki, professor da NYU (New York University). Brasileiro radicado em Nova York, Lepecki investiga as teias que conectam dança e política, buscando compreender como a expressividade corporal de determinado grupo está intrinsecamente ligada às questões sociais e políticas que o circundam.
Nas telas — o filme é dividido em duas grandes projeções dentro do Pavilhão — desenrola-se um West Side Story à moda pernambucana, cujos personagens performam a si mesmos diante das câmeras de Wagner e de Burca. Mesmo que indiretamente, a flexão que transforma swingueira em swinguerra, evoca o embate que estes corpos travam com o projeto de Brasil do Governo de Jair Bolsonaro.
Apesar de recusar caminhos fáceis ou panfletários, não é preciso uma interpretação tão profunda da obra para identificá-los como os protagonistas das lutas identitárias que vêm se desenrolando (em um intrincado campo de batalha) nos últimos anos no país. Se são tempos turvos para pensarmos sobre alteridade, o filme é capaz de arquitetar um poderoso olhar sobre este outro; subjetividades usualmente invisibilizadas que, à margem das pautas bolsonaristas, aparecem aqui legitimadas e empoderadas, protagonistas de suas próprias narrativas.
Em uma época de visibilidades extremas, onde a arte parece fadada a funcionar como pano de fundo para selfies no Instagram, a costura de Swinguerra é sutil o bastante para que o espectador indague-se sobre o que (e quem) está a assistir. Distantes do registro antropológico que frequentemente marca este tipo de trabalho e sem forçar um artificial pertencimento ao universo de seus retratados, Wagner e de Burca levam o espectador a questionar os limites de suas imagens — é tudo performance, afinal?
Um dos momentos mais curiosos da projeção acontece na abertura da última cena. Rodada no Campo dos Guararapes — sítio histórico onde foi travada a luta que encerra a Insurreição Pernambucana com a expulsão dos holandeses das terras brasileiras — o plano se inicia com uma voz em off prestando reverência aos dizeres da bandeira brasileira, ao passo em que os bailarinos fazem gestos de continência.
Esse nacionalismo incongruente logo é desconstruído por uma coreografia que conjuga rebolados, tremores e poses de batalha. Liderados pela protagonista Eduarda Lemos — cujo repertório gestual e longos cabelos evocam a atual diva do pop americano Beyoncé — um exército de (supostos) misfits encara as câmeras, impávido. Parecem nos entreter mas também nos despertar um medo insuspeito. Talvez resida aí o maior receio do projeto bolsonarista: não há corte orçamentário na educação ou aparato bélico capaz de deter ou controlar estes corpos. Agora é guerra.
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