Que liberalismo é esse que não ousa tocar grupos religiosos?
É cada vez mais difícil saber se esse grupo de economistas abandona os anéis para preservar os dedos ou apenas confere uma aura de liberalismo a um Governo
O professor da Fundação Getúlio Vargas e secretário da Receita Federal Marcos Cintra nos brindou esta semana com uma lição sobre a relação entre política e economia: a agenda liberal representada de maneira icônica pelo ministro da Economia só pode prosperar se e enquanto não se contrapor ao projeto político antiliberal do presidente da República, o que em boa medida significa negar os princípios do liberalismo econômico. E essa lição não se limita ao campo econômico, valendo para outras áreas igualmente importantes, como segurança pública, educação e gestão. Assim como Cintra, uma longa linha de burocratas aceita compor um governo com um ideário oposto ao que eles tradicionalmente defenderam, e ao fazer isso formam o arcabouço de governabilidade que permite a implementação de um programa que muitas vezes é avesso as suas próprias ideias.
O caso do ex-deputado do ‘imposto único’ e ex-presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) é tão simples quanto ilustrativo: sua proposta de reformulação da estrutura tributária estabelece uma contribuição de base universal. Conforme suas próprias palavras: “todo o mundo vai pagar esse imposto, igreja, a economia informal, até o contrabando”. Como contrapartida, seria extinta a contribuição previdenciária sobre salários, estimulando assim o emprego e o aquecimento da economia. Não cabe aqui fazer a análise dessa proposta. O ponto central é que o secretário foi imediatamente desautorizado pelo presidente não pelo conteúdo econômico do projeto, mas porque ele toca em uma pedra fundamental do edifício político que sustenta o atual Governo, que é o apoio dos grupos religiosos, principalmente evangélicos. Confrontado pelos interesses desses grupos, ficou claro que o liberalismo de Cintra não passa de peça secundária para o Governo, e o secretário teve que recuar após a repercussão de suas palavras.
Governos eleitos em geral são compostos por coalizões de grupos que disputam o poder durante todo o período de mandato. A luta fratricida dentro do Partido dos Trabalhadores nos ensinou isso de maneira muito clara. No caso do Governo Bolsonaro, a aliança profana que economistas liberais firmaram com cruzes, fardas, astrólogos e justiceiros gerou uma combinação instável, na qual os primeiros não necessariamente possuem poder político para fazer valer suas ideias. Pode-se dizer que isso faz parte do jogo político, e cada grupo prossegue na batalha, aceitando algumas derrotas e obtendo outros avanços.
O problema surge quando se torna cada vez mais difícil saber se esse grupo de economistas está abandonando os anéis para preservar os dedos, ou se estão apenas conferindo uma aura de liberalismo a um Governo que na prática rejeita os princípios mais basilares dessa doutrina. A ideia de uma "base universal" encontra-se no cerne da proposta de Cintra. Pode-se ainda chamar de liberal uma reforma tributária sem essa concepção fundamental? Que liberalismo é esse que se propõe a tributar todos, mas excepciona as diversas atividades de uma base específica de eleitores por sua adoração religiosa?
Desconfortos e incoerências similares abundam ao longo desses quatro meses de Governo, revelando as contradições internas entre a agenda econômica e os termos da chamada "nova política". Se a reforma da Previdência é esse Santo Graal que salvará as contas públicas do desastre e nos levará ao eldorado econômico, qual é o sentido de ter regras mais generosas para os militares, que aparentemente representam uma parcela considerável do déficit? Se somos muito liberais para não exigir o visto de entrada e atrair turistas estrangeiros, como desprezamos os visitantes que sejam homossexuais? Se esbravejamos pela ampliação dos mercados externos e contra uma política de aproximação com nossos vizinhos, por que arrumamos confusão com importantes consumidores de nossos produtos, como a China e países árabes? Faz sentido privatizar as estatais, mas não dar às empresas de economia mista a autonomia sequer para definir sua política de preços ou estratégia publicitária?
Em benefício de Cintra, cabe reconhecer que essa contradição não é exclusividade de economistas liberais ou do atual Governo. Henrique Meirelles não viu problemas em presidir o Banco Central na era Lula, Joaquim Levy comandou o Ministério da Fazenda de Dilma Rousseff, e sabe-se lá como Marcelo Crivella foi virar ministro em um Governo petista.
E a questão obviamente não se restringe a altos cargos. Profissionais muitas vezes sérios e competentes e que não compactuam com a visão política do Planalto ocupam posições de natureza política por motivações pessoais diversas, incluindo a preservação de conquistas ou a tentativa de aproveitar o momento para implementar propostas que façam avançar o funcionamento da máquina pública. Não é o caso de fazer julgamento dessas estratégias individuais. Mas não se pode deixar de chamar a atenção para o fato de que, muitas vezes, o custo dessa composição política é a negação da própria agenda que se pretendia implementar, mantida apenas sua roupagem ideológica ou aparência tecnicista através da presença do agente político ou técnico no governo. Os diretores do ICMBio parecem ter compreendido a profundidade dessa contradição e se retiraram de suas posições após a atitude destrambelhada de um ministro que demite o presidente do instituto e ameaça abrir processo administrativo contra os servidores, por eles terem se recusado a lhe prestar reverência.
Por fim, com o risco de resvalar no moralismo ou de recorrer mais uma vez ao discurso da banalização do mal, é importante que se questione se esse argumento não deve ser levado um passo adiante, para considerar não apenas a pauta política na qual os agentes públicos atuam diretamente, mas também outras que possam trazer profundas repercussões para o futuro do país. Até que ponto é aceitável que esses profissionais se prestem ao papel de participar de um Governo que toma decisões claramente desastrosas no campo da educação e que defenda o assassinato como forma de resolução de conflitos? Eles podem se isentar da responsabilidade por tais ações atribuindo-as aos demais grupos da base?
Talvez na política, ao contrário do direito penal, valha a inesquecível lição de Mildred Hayes para um padre em Três Anúncios para um Crime: se seus parceiros cometiam atos repudiáveis enquanto você celebrava a missa do liberalismo, você também é culpado: "você pertence à gangue". Mas essa é uma decisão que cabe à consciência de cada um.
Daniel Gama e Colombo é doutor em Economia do Desenvolvimento pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP e mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP. Pertence à carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, e atua na Diretoria de Estudos Educacionais do Inep.
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