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Caster Semenya é obrigada a se medicar para competir como mulher

Tribunal Arbitral do Esporte referenda a decisão da Federação Internacional de Atletismo. Atleta sul-africana fica proibida de correr se não reduzir seu nível de testosterona

Carlos Arribas
Semenya vence a prova dos 800m do Mundial de Atletismo de Londres, em agosto de 2017.
Semenya vence a prova dos 800m do Mundial de Atletismo de Londres, em agosto de 2017.David J. Phillip (AP)
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O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS) considera que as normas da Federação Internacional de Atletismo (IAAF) para regular a participação de mulheres com desenvolvimento sexual diferente (DSD) são “discriminatórias”, mas mesmo assim “necessárias, razoáveis e proporcionais” para preservar a integridade do atletismo feminino.

A decisão, anunciada na manhã desta quarta-feira, implica que a sul-africana Caster Semenya, de 28 anos, e todas as mulheres cujo organismo produza mais testosterona do que o considerado normal para o gênero feminino biológico deverão ser medicadas para reduzi-la; do contrário, serão proibidas de disputar todas as competições de corrida entre os 400m (incluindo as provas com barreiras ou obstáculos) e uma milha, nas quais as atletas africanas são as melhores.

Entretanto, apesar das evidências que a testosterona sintética é o doping favorito das velocistas e lançadoras, essas provas, em que a maioria das competidoras é europeia e norte-americana, não foram incluídas na proibição. As distâncias em que Semenya se destaca são justamente dos 400m aos 1.500m.

“Às vezes, a melhor reação é não reagir”, tuitou ela imediatamente, numa mensagem acompanhada do emoticon de “não entendo nada”. Depois, acrescentou em nota: “Sempre soube que a IAAF estava me perseguindo com seus regulamentos. Durante uma década a IAAF quis me frear, mas isso na verdade me fortaleceu. A decisão do TAS não me deterá. Vou me levantar outra vez”.

O laudo, cujo conteúdo integral (165 páginas) não foi divulgado por ser confidencial, pode ser alvo de recurso ao Tribunal Federal Suíço, já que o TAS, com sede em Lausanne, se rege pela lei desse país. Raríssimas vezes esse tribunal, o mais graduado da Justiça helvética, sentenciou contra uma decisão do TAS.

Antes da sentença, emitida em resposta à reclamação de Semenya, a melhor atleta dos 800m, tricampeã mundial e bicampeã olímpica, e da sua federação, a sul-africana, diversas associações de esportistas e de mulheres, e até a Assembleia Geral da Nações Unidas, tinham denunciado a imposição solicitada pela IAAF. Consideravam que não se pode obrigar uma mulher a se medicar (dopar-se) para competir, e salientavam que todas as atletas afetadas pela norma são africanas.

Os regulamentos tratam os homens de forma diferente. Os atletas com níveis de testosterona acima do normal podem se submeter a exames para demonstrar que se trata de uma questão genética, e eles então recebem uma carteira que lhes permite competir sem o risco de punição por doping.

Assim que foi divulgada a decisão que respaldava suas regras, a IAAF comunicou que elas entrarão em vigor na próxima quarta-feira, dia 8. “As atletas com DSD têm uma semana para reduzirem seus níveis de testosterona, então as aconselhamos a começarem imediatamente o tratamento de supressão para chegar a um nível inferior a 5 nanomols por litro”, diz o comunicado. “As atletas que queiram competir nos Mundiais de Doha [27 de setembro a 6 de outubro] deverão entregar uma amostra de sangue com esses valores antes de 5 de maio e mantê-los assim durante pelo menos seis meses”.

Para reduzir os níveis de testosterona, a pessoa deve se submeter a tratamentos de estrogênios que geram efeitos secundários variados, indetermináveis, longos e indesejáveis, embora a IAAF os descreva simplesmente como o uso de anticoncepcionais normais por via oral. A pílula será, portanto, a substância do doping ao contrário, uma ajuda química para competir pior.

Sem unanimidade

Semenya se sagrou campeã mundial dos 800m aos 18 anos, em Berlim-2009. Poucos depois, a IAAF a obrigou a se submeter a tratamentos para reduzir seus níveis de testosterona, e a sul-africana começou a lutar por seus direitos, ajudada pelo caso da atleta indiana Dutee Chand, que conseguiu que, num primeiro laudo, o TAS obrigasse a IAAF a suspender essa parte do regulamento. Desde então, Semenya é uma atleta imbatível, e por isso a IAAF fixou as normas que agora o TAS avaliza. O argumento de Semenya partia do princípio de que não foi demonstrado científica ou estatisticamente que seu nível elevado de testosterona fosse a razão do seu rendimento.

A decisão do TAS foi tomada por maioria simples (2 x 1) dos três árbitros que analisaram o caso entre 18 e 22 de fevereiro: Annabelle Bennett, da Austrália, Hugh Fraser, do Canadá, e Hans Nater, da Suíça. De certa forma, o TAS aceita parte dos argumentos de Semenya, a quem abre a porta para que possa participar das provas de 1.500m sem se medicar. “Por falta de provas concretas, e não teóricas, sobre as vantagens de atletas com DSD nos 1.500m e na milha, o TAS sugere que seja adiada sua aplicação para essas distâncias até que haja mais provas”, observa o tribunal, que também adverte a IAAF para a dificuldade de impor suas regras sobre o DSD baseando-se apenas nos níveis de testosterona. “É preciso tomar cuidado com a possibilidade de que uma atleta involuntariamente não possa cumprir a norma”, adverte. “E é preciso recordar que os efeitos secundários do tratamento hormonal necessário para reduzir sua testosterona na prática podem significar a impossibilidade de segui-los, por isso veríamos que essa regulação é desproporcional.”

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