O casal que se afundou em dívidas para tentar aumentar a renda com a Uber
Número de famílias com dívidas cresce no país e chega ao maior patamar desde 2015. Cifra trava retomada do consumo, mais um indicador que derruba expectativas de melhora na economia
Desempregado desde o início do ano, Glauber William Souza tem pressa para achar um novo posto de trabalho. Só no mês de abril calcula ter entregado, ou enviado por email, mais de cem currículos. "A crise no Brasil está feia, já não dá para escolher. Sinceramente, a vaga que aparecer, eu preciso aceitar. Meu último emprego foi como coordenador de uma hamburgueria", diz Souza após enfrentar uma longa fila em busca de uma oportunidade em uma rede de supermercado, que anunciou a abertura de 160 vagas, na zona sul de São Paulo, e reuniu milhares de pessoas. Enquanto continua na fila do desemprego —que atinge atualmente 13 milhões de brasileiros em um cenário de economia estagnada— , Souza aceita alguns bicos para conseguir pagar pelo menos as contas de luz e água e, também, a alimentação da família.
As dívidas do desempregado, no entanto, não param de crescer. "Pago o extremamente necessário. As outras contas estão atrasadas e já não pago nem o mínimo da fatura do cartão de crédito", diz. Para tentar quitar parte das pendências, ele pediu um empréstimo pessoal, mas acabou criando uma bola de neve de dívidas, que aumentou ainda mais após a mulher também ser demitida do local em que trabalhava. Além de perder o controle dos gastos com os quatros filhos e das contas da família, Souza diz estar "com o nome sujo na praça" por ter entrado na lista dos maus pagadores. "A questão é que isso também dificulta para eu conseguir um emprego", explica.
Souza faz parte de um grupo crescente de brasileiros que estão inadimplentes. Segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 62,4% das famílias tinham dívidas, em atraso ou não, em março, ante os 61,5% em fevereiro. Esse é o terceiro mês consecutivo de alta do indicador e o maior patamar desde setembro de 2015, quando o percentual de famílias brasileiras com dívidas chegou chegou a 63,5%. Os números não são apenas desanimadores para quem sofre diretamente com eles. A cifra de endividamento é indicador que mostra quanto dinheiro as famílias tem para gastar. Se é alta, quer dizer que sobra menos para o consumo, um dos fatores mais importantes para ajudar na retomada da economia como um todo. O dado se junta a outro também preocupante: a produção industrial em março caiu 1,3%, em relação a fevereiro, segundo o IBGE divulgou na sexta-feira. Se a comparação for em relação ao mesmo mês do ano anterior, o tombo é de 6,1%.
Cartão de crédito é apontado como vilão
Levando em conta apenas as famílias inadimplentes, isto é, as que deixaram de pagar contas, o índice ficou em 23,4% em março deste ano, acima dos 23,1% do mês anterior. O percentual de famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas ou dívidas em atraso, como no caso de Souza, aumentou de 9,2% em fevereiro para 9,4% em março deste ano. Segundo o levantamento, o cartão de crédito foi apontado como o principal motivo das dívidas por 78% das famílias, seguido por carnês (14,4%), e, em terceiro, por financiamento de carro (10%).
No caso da cuidadora Ana Paula Santos da Silva, de 40 anos, foi justamente o financiamento de um automóvel novo, em 48 parcelas, para que o marido se tornasse motorista de Uber, que fez com que os dois se afundassem na areia movediça das dívidas. Depois de Silva perder um emprego sem carteira assinada em janeiro, o casal não conseguiu mais pagar as prestações do financiamento. As dívidas do cartão de crédito também já chegam a quatro mil reais. Por enquanto, o dinheiro que o marido ganha como motorista é o que sustenta os gastos básicos da casa alugada em que vivem com o filho de 16 anos no Capão Redondo, na zona sul da capital paulista. "Recebo mensagem do banco querendo quitar a dívida quase todo dia, mas prefiro não pagar nada por agora e renegociar tudo quando voltar a ter um emprego, uma fonte de renda. A questão é que a minha idade já não ajuda, quando se tem 40 anos as oportunidades são menores", diz a desempregada.
Os números divulgados pelo Banco Central, no fim do mês de abril, revelam como está cada vez mais caro pegar dinheiro emprestado e, consequentemente, quitar a dívida. Os juros no rotativo dos cartões de crédito, que é quando o cliente não paga o total da fatura, subiu 4 pontos porcentuais de fevereiro para março. Com isso, a taxa passou de 295,5% para 299,5% ao ano. Já a taxa de juros da modalidade rotativo não regular —quando o pagamento mínimo não é realizado— passou de 310,9% para 312,4% ao ano. No caso do parcelado, ainda dentro da modalidade do cartão de crédito, o juro passou de 170,5% para 178,4% ao ano. Desde 2017, começou a valer uma regra que obriga os bancos a transferir, após um mês, a dívida do rotativo do cartão de crédito para o parcelado, mas nem isso foi suficiente para tirar as taxas dos rankings das maiores taxas de juros do mundo.
Com os juros nas alturas, não são poucos os brasileiros que deixam as dívidas rolarem. Desempregada, Valdirene Pereira dos Santos, de 39 anos, não sabe quando conseguirá quitar as dívidas de diferentes cartões de crédito que adquiriu em três lojas de roupa. "Todo dia chega uma cartinha de alguma loja, mas, no momento, não penso em pagar. O salário do meu marido é que sustenta a minha casa, mas não posso pedir dinheiro emprestado, tenho que correr atrás. É triste, mas essas minhas dívidas viraram uma bolinha de neve", lamenta.
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