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A nova velha direita espanhola

O ponto comum da centro-direita espanhola foi pelos ares. O PP, que reunia todas as famílias conservadoras, se fragmentou em três. Todos afiam as armas para uma campanha eleitoral em erupção

Jesús Rodríguez
Retratos de líderes da direita espanhola.
Retratos de líderes da direita espanhola. JUAN COLOMBATO

Em 1996, o ano em que o Partido Popular liderado por José María Aznar ganhou dos socialistas por vantagem mínima de votos, a direita queria ser de centro. Não estava na moda ser conservador. Menos ainda purista. Porque os puristas não conseguem maiorias. E não pescam nos pesqueiros da esquerda, como eles conseguiram com maioria absoluta em 2000. Duas décadas depois, a direita que se apresenta às eleições de 2019 quer ser de direita. “Sem complexos” e sem ser na surdina; com toda a parafernália patriótica e o revisionismo histórico; armada de sólidos valores morais e com um discurso cada vez mais agressivo, de traço rústico, pouco dado a sutilezas e consensos. Utilizando muito as redes sociais e de impacto imediato. E entrega a domicílio. Que contaminou todo o arco conservador. “Eu não me considero de extrema-direita porque durante anos não existiu direita”, diz Iván Espinosa de los Monteros, número três do Vox. “Aqui houve muita covardia. Nós somos da direita sem sobrenomes. A que quer evitar que 100.000 bebês morram por ano vítimas do aborto”.

Hoje, essa opção extrema (direita alternativa, como a define a este jornalista Rafael Bardají, um dos teóricos do Vox) marca a agenda de toda a direita pela primeira vez em 40 anos. Muitos pensavam que os radicais haviam desaparecido após obter seu melhor resultado em 1979 (378.964 votos) e rumar ao esquecimento. Não era verdade. Estavam latentes no coração do PP.

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Nessa campanha eleitoral ser moderado não é bem visto. Um termo que remete a pouca intensidade. Como, dizem no partido de Mariano Rajoy, era o ex-primeiro-ministro. “E assim perdemos a Catalunha”, afirmam no entorno de Pablo Casado, disposto a eliminar as marcas de seu ex-chefe, que foi vencido em uma moção de censura contra Pedro Sánchez sem que ocorresse uma batalha. No PP de Casado o lema é: “entrar com tudo, não nos render, não pedir perdão como fizemos à esquerda, e sim escutar nossos eleitores incomodados com nosso trabalho de governo”, diz Isabel Díaz Ayuso, candidata do PP à presidência da Comunidade de Madri e membro do círculo de Pablo Casado. “O eleitor de direita se sentiu diminuído pelo discurso progressista. Precisamos voltar a estar nos grandes debates culturais. Com princípios e valores. E não engolir a lei da memória histórica e que o aborto seja um direito”.

Um ato do Vox em Ciudad Real.
Um ato do Vox em Ciudad Real.Enrique Escandell

Um diagnóstico com o qual concorda María San Gil, ex-líder da ala radical do Partido Popular no País Basco (é a discípula predileta do grande símbolo católico e conservador espanhol, o ex-ministro Jaime Mayor Oreja), colocada à margem por Rajoy desde 2008 e hoje uma das referências da nova direita. Mesmo que tenha se recusado a entrar nas listas do partido por Madri, San Gil continua na luta como vice-presidenta da Villacisneros, uma fundação de caráter conservador em que divide o patronato com Ana Velasco, candidata do Vox por Madri, filha de um militar assassinado pelo ETA e fundadora da Associação Vítimas do Terrorismo (AVT). Para María San Gil, “é preciso ficar claro que somos de direita no PP. Não nos movemos de nossa posição natural. Não precisamos ser de centro. Não precisamos nos disfarçar do que não somos. O PP não teve determinação, firmeza e caráter. Agora é a hora”.

Já não é preciso se camuflar. É preferível ir à luta. E falar. Como faz o amigo íntimo das duas e, como elas, resistente durante duas décadas contra o terror do ETA e seu entorno no País Basco, o líder do Vox, Santiago Abascal, em suas memórias, chamadas (casualmente) Não me Rendo, quando relata o dia em que comprou sua primeira pistola 9 milímetros e quebrou a cara de um simpatizante do ETA em um bar de Llodio (Álava): “Não tive outra saída a não ser pegá-lo pelos cabelos e acertar-lhe uma joelhada na cara. Já frente a frente, dei um soco atrás do outro com toda a raiva de que era capaz, que devia ser muita pois o som dos golpes se sobrepunha à música do local”.

É a direita que está vindo. Já não é uma. Diversificou sua oferta. Algo evidente desde 2015, quando o PP perdeu na Espanha mais de três milhões de votos que foram ao Cidadãos. E depois, com os 400.000 votos obtidos pelo Vox na Andaluzia em dezembro de 2018. Existem três. O Partido Popular, o ponto comum, o produto multiuso projetado para ganhar eleitoralmente; a soma eficaz de famílias e ideologias, do neofranquismo à socialdemocracia, passando pelo neoliberalismo e o humanismo cristão, dirigido com mão de ferro por Aznar e com uma azeitada estrutura territorial, que ocupava todo o espaço à direita da esquerda e se definia de “centro reformista”, se fragmentou em três.

Uma participante do comício do Vox em Ciudad Real.
Uma participante do comício do Vox em Ciudad Real.Enrique Escandell

É a lei da oferta e da demanda. O resultado de um universo líquido. Volátil, incerto, complexo e ambíguo. “E da incapacidade dos políticos para responder a essa complexidade que desde os atentados das Torres Gêmeas nos causa tanto medo”, analisa José María Lassalle, secretário de Estado com Rajoy da Sociedade da Informação Digital e hoje afastado da galáxia do PP por Casado. “Nosso medo criou essa direita”. E há cinco anos é a Catalunha que provoca esse medo. E a ascensão dos radicais.

Cada uma das direitas dispõe de seu estilo e formas de se comunicar com a sociedade. Suas maneiras são diferentes, mas têm sua origem naquele PP virgem. Mostram uma enorme porosidade entre seus militantes, eleitores e divulgadores, e uma disposição sem dissimulação para chegar a alianças entre eles. Como ficou demonstrado em janeiro desse ano na Andaluzia. A romper o isolamento atribuído à direita nos anos de Zapatero, quando o bipartidarismo começava a rachar e o PP não podia governar com ninguém. E se sentia um nasty party. Hoje, o PP está pronto para fazê-lo com o Cidadãos e o Vox. Nenhum de seus dirigentes nega.

Pablo Casado, presidente do PP, em uma entrevista no jornal 'La Razón', em Madri.
Pablo Casado, presidente do PP, em uma entrevista no jornal 'La Razón', em Madri.Enrique Escandell

Além disso, os otimistas acham que algum dia voltará a existir uma só direita, sob o ambíguo rótulo liberal-conservador. É o caso de Cayetana Álvarez de Toledo, candidata do PP por Barcelona, eleitora do Cidadãos nas últimas eleições gerais e patrona da FAES, o laboratório de ideias do presidente Aznar: “Eu voltei ao PP para unir, para nos reagrupar no espaço da razão contra o separatismo e o coletivismo. Acredito em uma fusão do Partido Popular e do Cidadãos. Seria um reencontro natural. Não me importa o método, o importante é o objetivo, e a partir daí, dessa plataforma ampla e uma grande base sociológica, enfrentar o nacionalismo. Estamos em um momento crítico em que está em jogo a continuidade do sistema constitucional. E cabe a nós constitucionalistas encarar esse desafio”.

No papel, as três direitas apostam no mesmo. Um inventário impreciso e de amplo espectro. A unidade da Espanha, o rechaço aos nacionalistas, a liberdade individual, a defesa da Constituição (de única leitura e em que o artigo 2, “a Constituição se fundamenta na indissolúvel unidade da Nação Espanhola”, é uma verdade absoluta) e a economia de mercado. Suas principais diferenças estão no plano da moral e da religião, em usos e costumes; em assuntos como o aborto, a morte digna, a educação, as políticas de gênero e os direitos do coletivo LGBTI. E, evidentemente, no estilo retórico que utilizam. “O Vox é nacionalista e o nacionalismo é reacionário, venha de onde vier”, diz Álvarez de Toledo.

O Cidadãos seria algo assim como um PP laico, fotogênico, sem corrupção e que surgiu na Catalunha. Nasceu socialdemocrata em 2006, como lembra um de seus inspiradores, o constitucionalista Francesc de Carreras, “para ocupar o espaço da esquerda não nacionalista catalã, órfã do PSC. De fato, na Catalunha, o Cidadãos recebeu votos estritamente socialistas desencantados, especialmente a partir do tripartite de Maragall com o Esquerra e o Iniciativa”. Quando cruzou o Ebro, entretanto, o Cidadãos guinou à direita, abandonou a socialdemocracia e se cobriu com um manto etéreo “liberal progressista”. E pescou em águas do PP. “O problema agora não é tanto a direitização da direita e sim sua nacionalização. Por isso foi uma bobagem ir à praça de Colón”, conclui Carreras.

Albert Rivera, presidente do Cidadãos, em ato eleitoral de seu partido em Zaragoza.
Albert Rivera, presidente do Cidadãos, em ato eleitoral de seu partido em Zaragoza.Enrique Escandell

E o Vox, que nasceu em 2004 como uma cisão do Partido Popular (quatro de seus fundadores, Alejo Vidal-Quadras, José Luis González Quirós, Santiago Abascal e José Antonio Ortega Lara eram importantes militantes do partido) representaria uma versão caricatural do PP: a das essências imutáveis. A acumulação de descontentamentos de signos diferentes, adornada por um inesgotável extremismo digital; com a presença em seu núcleo de grupos religiosos neocon, em aberta guerra cultural contra o progressismo (e tudo o que estiver relacionado a feminismo, ecologismo e europeísmo), e com uma dose do pensamento White Man Revolt em seu interior que, a partir de uma crise da identidade masculina, reivindicaria a família mais tradicional e a divisão da sociedade dentro dos papéis mais tradicionais de gênero. Elementos próprios da “direita alternativa” de Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil.

As direitas no tabuleiro de jogo são quatro, se levarmos em consideração a fratura vivida pelo PP entre os seguidores de Pablo Casado, vencedor das primárias em julho de 2018 com menos de 60% dos votos, e a derrotada Soraya Sáenz de Santamaría, cujos colaboradores foram varridos (sem exceção) das listas. “Porque o grupo parlamentar é a organização chave do poder de um partido e deve ser de fidelidade absoluta ao chefe”, diz Celia Villalobos, fora da lista do PP após 30 anos no Congresso. Quase todos os ministros, secretários de Estado e ideólogos de Mariano Rajoy desapareceram do mapa eleitoral. E migraram ao setor privado. Começando por Sáenz de Santamaría. Nenhum abriu a boca (pelo menos em público). Quase todos falaram para esta reportagem.

Cayetana Álvarez de Toledo, candidata do PP por Barcelona e nas últimas eleições gerais, eleitora do Cidadãos.
Cayetana Álvarez de Toledo, candidata do PP por Barcelona e nas últimas eleições gerais, eleitora do Cidadãos.Enrique Escandell

Defendem o trabalho de Rajoy e seu caráter moderado, sua resistência aos grupos de pressão religiosos, midiáticos e, principalmente, ao poder financeiro do Ibex e das empresas localizadas na Catalunha, “que apoiaram o Cidadãos e o Vox dando-lhes um cheque em branco”, dizem os leais a Rajoy, apontando uma possível conspiração. Rajoy fez tudo certo? Acertou na Catalunha como diz seu pessoal? Já se ouviu o ex-ministro Alberto Ruiz-Gallardón fazer essa reflexão: “O país foi bem gerido, mas falhou no exercício da liderança social; não foi captado e calibrado entre os espanhóis o sentimento causado com o que acontecia na Catalunha. Faltou ir às ruas. Conseguir se comunicar com as pessoas. Fazer um discurso como o do Rei. E, diante dessa falta de liderança social, o Cidadãos e o Vox o ultrapassaram”.

Dois dos leais a Rajoy defendem a ascensão de Casado no PP como a vitória da “água benta”, lembram que foi ajudante pessoal de Aznar durante dois anos “e percorreram centenas de milhares de quilômetros juntos. Não são amigos, mas o presidente tem muita influência sobre ele”. Outra interlocutora vinda desse lado lembra o fenômeno da corrupção, que fez Rajoy sofrer quando vinha de antes, “e estava instalada como os buracos em um queijo em Valência e Madri. Não se esqueça que os dois vice-presidentes de Esperanza Aguirre (Nacho González e Paco Granados) chegaram a ser presos”.

Uma terceira fonte aponta diretamente Aznar, “que nunca se deu por vencido contra Rajoy, que o decepcionou. E quando viu que não podia apeá-lo, resolveu derrotá-lo. De fato, não o retirou de seu cargo. Não podia fazê-lo porque significaria contradizer sua decisão de nomeá-lo sucessor em 2004. Além disso Aznar já está pensando em seu lugar na história da Espanha. Mas as análises da Fundação FAES contra Rajoy eram demolidoras. Rajoy também não podia enfrentá-lo cara a cara porque devia sua liderança à indicação de Aznar. Rajoy o ignorou. E Aznar esperou. Com essa paciência que lhe é característica. Foi uma guerra fria. A ruptura foi total”.

É a lei de ferro dos partidos: quem perde se vai. E talvez retorne algum dia quando a situação mudar. O que não é improvável. Como ficou demonstrado com o retorno do setor ligado a Aznar 10 anos depois à liderança do partido, às suas células ideológicas e às listas, por exemplo de Madri e Barcelona, das eleições europeias pelas mãos de Pablo Casado, de quem Esperanza Aguirre fala com desembaraço: “É um produto meu, muito liberal, e me parece um craque. O melhor. Eu disse a ele para retirar o gel; deixou de ser Pablito e hoje é dom Pablo”. De fato, Aguirre, que não esconde sua simpatia por Albert Rivera, Santiago Abascal (a quem deu guarida e um bom emprego em 2010 como diretor da Agência de Proteção de Dados da Comunidade de Madri) “e pelo boina verde” (Javier Ortega, o número dois do Vox), foi a incansável mentora de Casado. Em 2004, o presidente do PP se referiu dessa forma à sua madrinha: “Sou de Esperanza. Comecei na política por ela. Estou totalmente com ela”.

Um participante de comício de Santiago Abascal, do Vox, realizado no final de março em Ciudad Real.
Um participante de comício de Santiago Abascal, do Vox, realizado no final de março em Ciudad Real.Enrique Escandell

José María Aznar, terno cinza escuro sob medida, elegantes sapatos de couro, Rolex e sombra de bigode sem bigode, relata em seu escritório de Madri da FAES, no bairro do Retiro, como a partir de 1990 conseguiu reunir as direitas dispersas após o franquismo: “A primeira coisa que fiz foi organizar o partido, com muita disciplina e uma estrutura hierárquica clara (retirei sete vice-presidentes de Fraga). Minha ideia era somar e integrar esses liberais e conservadores, ou seja, apostar na adição e não na subtração. A segunda coisa, recuperar os restos da UCD e atrair as direitas regionais. A terceira coisa, colocar o PP como uma alternativa real de Governo aos socialistas, com uma oposição contundente. E a quarta, entrar no Partido Popular Europeu para conseguir uma homologação internacional. Era claro para mim que não deveria existir nada além de nós à direita do PSOE. E à nossa direita não restava nada porque a Força Nova havia desaparecido. Dessa posição podíamos até mesmo retirar votos do PSOE. Em 1993 éramos a alternativa e em 1996 ganhamos”.

— Com qual ideologia?

— O PP nasceu sem rótulos, as pessoas não os queriam. Era melhor não se definir. Éramos de centro reformista.

— E o que isso queria dizer?

— Que apostávamos nos valores da Transição e na Espanha aberta.

— Por que a direita se partiu em três?

— Vivemos uma tendência geral ao fracionamento social, midiático e político. E depois existem fatores específicos da Espanha, como o separatismo e a crise de governabilidade.

— Por que surgiu o Cidadãos?

— Pela falta de presença, abandono e falta de vigor da Espanha e seu Governo na Catalunha desde 2004.

— E a ascensão do Vox?

— Pela ação do Governo do PP em relação ao golpe de Estado na Catalunha de 1 de outubro. Não foram tomadas decisões no momento com a profundidade e a contundência necessárias. E na política antiterrorista contra o ETA foi feito o mesmo que fazia Zapatero. Eu via o que iria acontecer. E não era confortável dizer no meu partido que outros estavam ocupando nosso espaço. Paguei um preço muito alto. Era acusado de tudo. Prescindiram de minha presença.

— Por que não lutou contra Rajoy?

— Não podia atacar o que eu mesmo havia criado.

— Ocorrerá uma reconstrução da direita?

— É preciso procurar pontos de entendimento. Está claro que a esquerda é o separatismo. Agora o importante é que ganhemos as eleições porque o PP retomou seu DNA e o Vox pode ser reabsorvido.

— E fazer alianças como na Andaluzia

— É preciso somar, não subtrair.

— Em que lugar o senhor estará?

— Estarei onde a Espanha precisar. E ver como ajudar e ser útil.

O PP de 1993 era uma máquina eleitoralmente eficaz, mas não possuía ideias e princípios. Alguns anos antes, em 1989, Aznar e seus filhotes liberais (Carlos Aragonés, Miguel Ángel Cortés, Alfredo Timermans) criaram a Fundação para a Análise e os Estudos Sociais (FAES), que deveria armar ideologicamente o Titanic da direita. E atrair intelectuais às suas margens para travar a guerra cultural. Como eram seus membros? Como definiu a este jornalista seu vice-presidente, o já falecido ex-ministro das Relações Exteriores do UCD José Pedro Pérez Llorca, “de um liberalismo radical no econômico, temperado com uma atitude muito conservadora nos costumes. Havia muito Opus”.

Santiago Abascal, líder do Vox, em Ciudad Real. Do lado direito, de óculos, Ignacio Gil, ex-deputado do PP.
Santiago Abascal, líder do Vox, em Ciudad Real. Do lado direito, de óculos, Ignacio Gil, ex-deputado do PP.Enrique Escandell

Desse think tank saíram ministros e secretários de Estado; presidentes de empresas públicas, intelectuais orgânicos e membros da equipe de apoio a Aznar. Nele seriam elaborados os programas eleitorais do partido (até mesmo em 2011 com Rajoy, quando, de acordo com seu diretor, Javier Zarzalejos, “70% do programa do PP saiu da FAES, mesmo que depois tenham dito o contrário”). Pela fundação passaram muitos dos que agora são alguma coisa nas três direitas espanholas. De Pablo Casado e seus principais ideólogos, Javier Fernández-Lasquetty e Isabel Benjumea, a Esperanza Aguirre, Cayetana Álvarez de Toledo, Gabriel Elorriaga, Jaime Mayor e María San Gil, no PP; sem esquecer de dois dos fundadores do Vox (Alejo Vidal-Quadras e José Luis González Quirós) e dois de seus principais ideólogos (José María Marco e Rafael Bardají), e também destacados membros do Cidadãos, como Luis Garicano e Juan Carlos Girauta, que colaboraram com a fundação. Durante os Governos de Rajoy, a FAES foi o polo mais crítico da direita a suas políticas. Algo assim como um PP verdadeiro. Quando se pergunta a Aznar sobre por que os inspiradores do Vox vieram de sua fundação, ele se limita a sorrir: “A FAES sempre foi uma excelente formadora. É uma casa aberta. Por aqui passou muita gente. O PP tem uma nova direção e mudanças a fazer, e nós nos limitamos a dar nossa opinião. Essa é uma casa privada”. É preciso lembrar que Aznar, em um de seus aborrecimentos com Rajoy, rompeu a histórica relação orgânica da fundação com o PP (e o acesso a subvenções públicas) em 2016.

Da FAES surgiram outros ideólogos liberais e conservadores da direita interconectada que se aproxima, como Guillermo Gortázar, Pilar del Castillo, Alicia Delibes, Eugenio Nasarre e Regino García-Badell (braço direito de Esperanza Aguirre), muito combativos dentro do PP no terreno dos valores católicos. E um brilhante laboratório de ideias de intelectuais muito jovens localizado na metade do caminho entre o Vox e o PP: a Rede Floridablanca, que castigou duramente Rajoy em seu site a partir de 2015. Sua diretora, Isabel Benjumea, é hoje a principal fonte de Pablo Casado.

A direita começou a se romper após os atentados de 11 de março de 2004, que fulminariam as previsões de sucessão projetadas por Aznar em torno a um maleável e continuísta Rajoy. O PP perdeu as eleições contra o PSOE de José Luis Rodríguez Zapatero. Aznar não o dirigiu. E se entrincheirou na FAES. Depois se afastou. E se dedicou às suas coisas.

Mayor Oreja (hoje afastado da política e centrado na “pré-política”, na luta pelos valores morais e contra o “relativismo social” em sua fundação Valores e Sociedade) continua pensando, contra toda a lógica e quase à paranoia, que esses atentados (segundo ele, “nunca esclarecidos”) foram a ponta de lança de uma mudança de regime na Espanha; do começo de um roteiro acertado pelo ETA e Zapatero que Rajoy seguiu ao pé da letra. O ETA deixaria de matar e em troca Zapatero mudaria os valores morais da Espanha. O primeiro passo era que os membros do ETA não pagassem por seus crimes e entrassem nas instituições. O segundo, a independência da Catalunha. E pelo caminho, a lei do aborto, o casamento homossexual, a implantação da matéria de Educação à População e a lei de memória histórica.

Em torno a essa teoria da conspiração sobre a autoria da matança do 11-M que atribuíram ao ETA surgiu um núcleo radical de comentaristas em três veículos de imprensa; o jornal El Mundo, a Cope e Intereconomia, que ganhariam mais tarde a companhia do Liberdade Digital e 13TV, além de um bom número de sites conspiracionistas. Significou a ideia agregadora e o ponto de encontro de grande parte dos ideólogos da atual direita nacionalista, branca, antiabortista, revisionista e homofóbica. O presidente do Intereconomia, Julio Ariza, se orgulha de que “tanto o Cidadãos como o Vox nasceram nessa casa. Nós os apoiamos nos momentos ruins, principalmente em 2014, quando perderam nas eleições europeias e quiseram jogar a toalha. Todos surgiram no Intereconomia. Ainda que os membros do Cidadãos tenham se esquecido. E isso porque Rivera vinha aqui todas as semanas”. Muitos dos que participam de suas discussões e seus jornalistas alimentam as listas eleitorais e os centros ideológicos do PP, Cidadãos e, basicamente, do Vox, com nomes como Kiko Méndez-Monasterio, José María Marco, Fernando Paz e Juan E. Pflüger.

Com o PP nocauteado entre 2004 e 2011, dois tipos de movimentos reivindicaram a oposição que, segundo eles, Rajoy não fazia a Zapatero: as associações de vítimas do terrorismo (contrárias à negociação com o ETA) e os grupos católicos ultraconservadores, que iram lotar as ruas de Madri, animados pelo cardeal Antonio María Rouco Varela e dezenas de bispos, a favor da família tradicional. Entre as principais associações impulsoras, o Foro Espanhol da Família, presidido pelo popular Benigno Blanco, que foi secretário de Estado com o PP e hoje próximo ao Vox, e divide militância antiabortista na organização ultraconservadora RedMadre com Adolfo Suárez Illana, número dois de Casado em Madri, e que representa o setor mais obstinado no PP para modificar a atual lei do aborto.

Pelo contrário, o PP de Rajoy não apoiou e não rechaçou essas mobilizações. “É um problema para o PP entrar em assuntos de sexualidade. É melhor nem os mencionar”, diz um ideólogo do partido, que continua: “Nunca sabemos o que fazer com esses assuntos. 25% de nossos eleitores são contra o aborto e 75% não se importam. O problema é que esses dois milhões de eleitores que votavam em nosso partido com o nariz tapado agora podem ir para outro lado: o Vox. É preciso consertar esse vazamento”. Para um ex-membro do Governo de Rajoy, “as pessoas votaram no PP para acabarmos com a crise, não para retirar o aborto e o casamento homossexual”.

Nas manifestações contra Zapatero dois personagens hoje no coração do Vox tiveram grande protagonismo: Francisco José Alcaraz, à época líder da AVT, e Ignacio Arsuaga, fundador do HazteOir, uma plataforma integrista, homofóbica e antiabortista com estreitas conexões com o Vox através de Rocío Monasterio e Lourdes Méndez Monasterio (as duas rígidas guardiãs do partido em assuntos morais). Arsuaga diz que ele foi “um dos militantes decepcionados com o PP. A direita não realizou a fundo a batalha cultural sobre as ideias, como foi feito nos Estados Unidos. O PP se transformou em um comparsa ideológico da esquerda. Não acabou com a lei do aborto, como havia prometido. E, claro, as pessoas se cansam. Agora é tarde para mudar. Além disso Casado tem pessoas como Feijóo, Maroto e Alfonso Alonso que não compartilham nossas ideias. Mas tudo bem, já estivemos com Casado e Teo Egea (secretário geral do PP) e estavam receptivos”.

— E o Vox?

— Estamos felizes por esse partido expor o que nós dizemos. Não somente na questão da família e do aborto, como também na unidade da Espanha, que é um bem moral, como disse o cardeal Cañizares.

A ruptura do PP se aprofundou em seu congresso de Valência, em 2008. Lá, o PP matou o pai, Aznar, e girou levemente ao centro sob a bússola do novo guru eleitoral de Rajoy (antes o foi de Aznar), Pedro Arriola. De acordo com sua estratégia, o PP deveria deixar de ser o dobermann. Era preciso moderação.

Javier Zarzalejos, diretor da FAES e candidato às eleições europeias pelo PP, acha que Arriola se confundiu em suas pesquisas de opinião: “O PP já estava no centro. Mas diagnosticou mal as eleições perdidas em 2008. E a partir daí ocorreu a retirada da ideologia do partido, rumo à gestão pura, o senso comum, a ortodoxia jurídica, os congressos sem problemas. Em direção a um PP que não provocasse repúdios. E possivelmente Rajoy não atendeu as famílias políticas. Não prestou muita atenção à compactação ideológica do PP, um partido no qual conviviam muitas correntes. A manutenção do equilíbrio interno foi abandonada. A corrupção também deteriorou a marca. Mas, principalmente, é a Catalunha que faz com que o Cidadãos e o Vox capitalizem esse descontentamento e repúdio em relação ao PP e sua gestão da crise”.

José Luis González Quirós, um dos fundadores do Vox, conta que quando Santiago Abascal apareceu em sua porta em 2013 para se integrar em seu projeto político, “o fez desembarcando com seu próprio partido, o Denaes (Fundação para a Defesa da Nação Espanhola), sob a armadura”. Os patriarcas o aceitaram de boa vontade. Abascal interessava a eles (ainda que fosse um político “de terceira fileira” porque contribuía com a estrutura territorial de sua associação, centenas de militantes muito jovens, milhares de simpatizantes, finanças sob controle como associação (mais tarde chegaria ao Vox o dinheiro dos iranianos e dos empreiteiros) e o intenso apoio do Intereconomia e do Liberdade Digital.

O Denaes era um grupo de exaltação patriótica criado em 2006, no cosmos dos grupos de vítimas do terrorismo e de constitucionalistas no País Basco, e próximo ao Basta Ya e o Foro de Ermua. Ativistas que, como Javier Ortega Smith e Enrique Cabanas (hoje do núcleo duro do Vox), foram em nome do PP aos povoados mais perigosos do País Basco durante as eleições municipais. E que foram muito ativos em seus protestos de rua contra a libertação do membro do ETA Bolinaga; a anulação pelos tribunais europeus da doutrina Parot, que significava a libertação de muitos assassinos do ETA, e a legalização do Bildu. As principais referências conservadoras lhes deram todo o seu apoio. De Esperanza Aguirre, cedendo a eles o edifício da Porta del Sol para realizar suas entregas de prêmios, a Aznar, Ortega Lara, Vidal-Quadras, Mayor Oreja, Ángeles Pedraza, Nicolás Redondo e até um ex-chefe da Casa do Rei de Juan Carlos I, Sabino Fernández Campo, como patrono de honra. Imediatamente o Denaes se acostumou a entrar na Justiça e se personificar como acusação particular contra todos que cruzassem seu caminho, especialmente nacionalistas bascos e catalães. Javier Ortega, no começo assessor jurídico do Denaes, pendurou a toga. Atualmente enfrenta os acusados pelo referendo de 1 de outubro no Supremo como membro da acusação popular. Não teve momentos de glória jurídica, mas consegue horas de televisão.

O homem de Abascal no Denaes era (e é) Ricardo Garrudo, um empresário da Cantábria, proprietário da Wolder Electronics, uma empresa que fabricava celulares e tablets na China e os importava e vendia na Espanha, até que faliu em 2017 e demitiu uma centena de seus funcionários. Hoje é o líder do Vox em Santander. Na cidade lembram que Garrudo sempre se gabou de ser franquista. É um dos homens de total confiança militar de Abascal ao lado de Ortega e Cabanas. “Dariam sua vida por ele”, afirma Cristina Seguí, fundadora do Vox e hoje afastada do partido.

Os “amigos da nação”, como os líderes do Denaes se denominam, tomaram em menos de um ano o controle do Vox e mandaram para a rua os velhos regeneracionistas. E transformaram o partido político, que era em sua gênese uma cópia conservadora do PP, em algo diferente: em uma mistura de militantes dos velhos e novos grupelhos de extrema direita mesclados com nacionalistas espanhóis, antiabortistas, neoconservadores, ultracatólicos, sindicalistas corruptos (Mãos Limpas), criacionistas, teóricos da conspiração, militares irritados pela política de promoções, fãs da caça e touradas, islamofóbicos e negacionistas do Holocausto, sob o controle militar de Abascal, Ortega, Enrique Cabanas e Rocío Monasterio (que representa a ala religiosa radical e antifeminista). Sua questão já não era tanto ganhar eleições, e sim mudar a Espanha. Ou seja, rebobinar ao cenário anterior a Zapatero. Ao dia 11 de março de 2004. A manhã do atentado de Atocha. Que durante 15 anos foi seu Dia da Marmota.

Só o conseguirão se aliando às outras direitas. Algo que ninguém duvida. “O Vox só pode se aliar ao PP porque são feitos da mesma madeira e, portanto, terá que reduzir suas exigências mais extremistas. E o Cidadãos já disse que só se aliará ao PP. E o PP não irá se aliar aos nacionalistas catalães e bascos. O bipartidarismo morreu. E só resta marchar juntos”, conclui um ex-ministro do PP.

O PP finalizou uma parte de sua história com a queda de Rajoy, o último dos pais fundadores ainda na ativa. Tem um novo líder, Pablo Casado (muito doutrinário em matéria moral), e conta novamente com a potência ideológica da FAES nos bastidores. Enquanto isso, o Cidadãos se debate em sua identidade e ainda não sabe se são liberais como Macron ou como Thatcher. E o Vox pesca em todos os pesqueiros, até no do Podemos (como confirmam seus líderes), com seu discurso nacionalista agressivo. Todos tentam conseguir mais votos do que seus adversários. A dúvida é qual prevalecerá sobre o resto. E, portanto, qual modelo de direita pode chegar a governar na Espanha.

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