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Na China, a ‘rebelião’ contra os “9.9-6”: trabalho das 9h às 21h, seis dias por semana

Funcionários de empresas de tecnologia protestam contra jornada das 9h às 21h, seis dias por semana, defendida por empresas como o Alibaba

Um trabalhador na linha de produção de celulares da fábrica da Huawei em Dongguan, em março.
Um trabalhador na linha de produção de celulares da fábrica da Huawei em Dongguan, em março.WANG ZHAO (AFP)
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“Minha namorada me avisou: aquilo estava mudando meu caráter. Eu já não ria com os amigos. Estava com pior humor, e sempre cansado”. Lenny Zhang, de 24 anos, especialista em mídia digital, recorda com horror seu trabalho em uma startup de realidade virtual em Pequim. “No início não era ruim, porque ainda não havia muito para fazer. Mas quando começamos a ter clientes, isso mudou. Eu tinha de ficar sempre no escritório trabalhando até tarde e, é claro, sem pagamento extra. Nos fins de semana o chefe podia ligar para você, se houvesse alguma emergência, e você tinha de ir. Se você ia embora cedo, mesmo que não tivesse nada para fazer, isso era mal visto: achavam que você não estava trabalhando duro o suficiente”, relata.

O que Lenny Zhang (nome fictício) descreve é o que se conhece na China como a cultura do “9.9-6”. Trabalhar todos os dias das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana. Algo que em outros países pode soar familiar − as críticas às condições duras de trabalho chegaram até ao Vale do Silício. Mas na segunda potência mundial, o insólito protesto dos trabalhadores de empresas de tecnologia surgido nas últimas semanas tem, como quase tudo neste país, “características chinesas” especiais.

É insólito tanto por ter encontrado um meio para se expressar publicamente − a plataforma para desenvolvedores de código GitHub − em um país onde impera a censura, como pelo debate nacional que provocou. Um debate que se acirrou depois de que magnatas como Jack Ma, fundador do gigante do comércio eletrônico Alibaba, saíram em defesa desse regime trabalhista.

Jack Ma, fundador do Alibaba, em janeiro em Davos.
Jack Ma, fundador do Alibaba, em janeiro em Davos.Arnd Wiegmann (REUTERS)

O descontentamento começou a ser sentido, segundo funcionários do setor, no ano passado. Não que até então as longas jornadas de trabalho fossem algo raro. Mas é que em 2018 a intensa competitividade das empresas chinesas de tecnologia teve de passar a lidar com a desaceleração generalizada da economia. As empresas começaram a contratar menos. Em janeiro, a oferta de trabalho no setor tinha caído 15% em relação a 12 meses antes, segundo a página de anúncios de emprego Zhaopin. Era preciso produzir mais com menos e pelo mesmo salário, e cada um tinha acumular − ainda mais − funções. Ou correria o risco de ir para o olho da rua, por demissão ou por falência da empresa.

É claro que isso nunca foi dito explicitamente, ou em público. A legislação chinesa prevê 40 horas semanais de trabalho. Se passar disso, o funcionário deve receber uma compensação, e em nenhum caso o número de horas extras pode ser superior a 36 por mês.

Um projeto viral

Em março, um grupo de desenvolvedores anônimos criou no GitHub, uma plataforma para compartilhar códigos de programação, uma página irônica, 996.ICU. O nome fazia referência a um ditado entre os trabalhadores do setor na China: “Se você trabalhar 9-9-6, acabará na unidade de terapia intensiva [ICU, na sigla em inglês]”.

A página inclui recomendações — “vá para casa sem nenhum peso na consciência às seis” — e uma lista de mais de 150 empresas que adotam esse regime de trabalho, incluindo gigantes como Alibaba, Huawei e ByteDance, a empresa responsável pelo aplicativo de vídeos curtos TikTok. A “licença anti-996”, que já foi adotada por mais de 90 projetos no GitHub, obriga as empresas que queiram usar o software desses projetos a respeitar as leis trabalhistas. O golpe de mestre da iniciativa é que a censura, por muito que queira, não pode bloquear o GitHub: as tecnológicas chinesas precisam dessa plataforma para compartilhar código.

A 996.ICU viralizou na hora. É o projeto mais compartilhado de toda a plataforma. Claramente, muita gente se sentiu identificada. Mas isso poderia não ter passado de um caso pontual sem maiores consequências se presidentes de grandes não tivessem se pronunciado a respeito do assunto.

“Se você não está disposto a trabalhar 12 horas, para que vem?”, diz Jack Ma

Jack Ma e Richard Liu, presidente do outro gigante logístico, JD.com, resolveram falar na semana passada. E causaram um rebuliço. Em um comentário em redes sociais, Ma, um dos homens mais ricos da China, opinou que os trabalhadores deveriam considerar uma bênção poder trabalhar 9-9-6. Sem esse regime − que possibilitou que sua empresa decolasse −, a economia do país “muito provavelmente perderia ímpeto e vitalidade”, afirmou. “Se você entra no Alibaba, tem de estar disposto a trabalhar 12 horas por dia. Se não, para que vem? Não precisamos de quem trabalha oito horas confortavelmente”, acrescentou.

Liu, por sua vez, considerou que sua empresa se encheu de “preguiçosos” pelos quais não pode sentir nenhuma simpatia. Suas opiniões particularmente dolorosas porque a JD.com − que está em situação delicada e, segundo o site especializado The Information, estuda a possibilidade de demitir 12.000 pessoas, 8% de seu quadro de funcionários − advertia em uma mensagem interna vazada que se livrará daqueles que não “lutarem duramente”, independentemente de suas circunstâncias pessoais.

Comentários como esses provocaram ainda mais indignação. “Nas empresas de software de Xangai não se fala de outra coisa atualmente”, aponta um analista de dados. Na opinião de vários empregados de companhias de tecnologia, se o debate calou tão fundo é porque, pela primeira vez, as empresas defenderam em público, abertamente, práticas que até agora ninguém dizia diretamente que era preciso seguir. “A pressão estava aí, mas funcionava por insinuações, por subentendidos”, diz um desses funcionários.

Os meios de comunicação oficiais, que refletem a opinião do Governo, também entraram no debate, concentrado agora em se é adequado ou não o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal oferecido pelas empresas chinesas. O Diário do Povo, jornal do Partido Comunista, afirmou em tom conciliador, em um editorial publicado no domingo passado, que “os trabalhadores que criticam o 9-9-6 não podem ser acusados de ser preguiçosos ou pusilânimes. É preciso levar em conta suas verdadeiras necessidades”.

“O problema é que o mercado chinês é realmente intenso e competitivo”, opina Lenny. “Para a maioria das pessoas, nem passa pela cabeça a ideia de que não é necessário trabalhar tantas horas. Incutiram em nós que para ter sucesso e ganhar dinheiro é preciso trabalhar muito, muito duro.”

Para o jovem desenvolvedor, a mobilização parece uma boa notícia, embora ele se mostre cético quanto às possibilidades de êxito. “Isto deveria ter sido feito há 10 ou 20 anos, quando o setor tecnológico estava começando. Agora é tarde demais, tudo já está muito consolidado”, afirma. Ele pretende ir para a Europa para ampliar seus estudos daqui a dois ou três meses. “Se puder, vou ficar por lá. Não quero voltar para o 9-9-6.”

Nem todos são contra

M.V.L.

Embora as críticas tenham tido bastante repercussão, nem todos os trabalhadores do setor, longe disso, consideram-se explorados ou são contra trabalhar todas as horas possíveis, dia após dia. Amber Qi, de “vinte e poucos anos”, funcionária de uma empresa de robótica em Cantão, é uma das pessoas que pensam dessa forma. Trabalha todo dia das 10h às 22h, seis dias por semana. Às vezes, sete. Mas não acha que isso seja um pouco exagerado. “Há casos piores”, garante.

“Não me importo de trabalhar tantas horas”, diz Amber Qi. “Gosto da equipe que formamos na empresa. É útil trabalhar todo esse tempo: se estamos cansados, podemos ir para casa descansar um pouco, não somos daqueles que ficam perdendo tempo no escritório sem ser produtivos.”

A jovem minimiza as declarações de Jack Ma: “É preciso colocá-las no contexto do típico chefe chinês, que pretende doutrinar seus funcionários. Isso pode funcionar para pessoas de 30, 40 anos. Mas os mais jovens não precisamos que o chefe nos diga o que fazer. Se o projeto nos motivar, dedicaremos a ele as horas que forem necessárias. Se não, iremos embora”. Será que dá para manter esse ritmo sempre? “Quando eu for mais velha, mudarei de emprego, para um que tenha menos horas”, diz ela.

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