Presidente da Argélia desafia protestos e oficializa candidatura para quinto mandato
Centenas de estudantes foram às ruas do país para manifestar contra a candidatura de Buteflika, de 82 anos, no poder desde 1999. Presidente está hospitalizado na Suíça
Abdelgani Zalene, o recém-nomeado diretor de campanha do presidente argelino, Abdelaziz Buteflika, apresentou na tarde deste domingo perante o Conselho Constitucional a documentação necessária para formalizar a candidatura de Buteflika para as eleições de 18 de abril. Terminava neste domingo à o prazo para oficializar as candidaturas para as eleições presidenciais. Segundo a agência oficial APS, a lei eleitoral não prevê que o candidato deva apresentar pessoalmente seus documentos.
A manhã começou com a concentração de centenas de estudantes universitários nas principais cidades do país para protestar contra a candidatura de Buteflika no poder desde 1999. Todos aguardavam a sede do Conselho Constitucional, onde deveriam ser depositados. candidaturas O quartel-general foi blindado pela polícia de choque desde a noite de sábado.
O presidente argelino é apelidado por muitos como A Múmia por seu estado de saúde após o derrame cerebral sofrido em 2013. Um homem que completou 82 anos no sábado, que não pronuncia um discurso em público desde maio de 2012 e que em 10 de fevereiro expressou por carta sua intenção de se candidatar às eleições presidenciais de 18 de abril.
Enquanto centenas de milhares de pessoas saíam às ruas nas principais cidades para expressar seu repúdio à quinta candidatura de Buteflika, o dirigente permanecia internado em um hospital de Genebra, em que foi no domingo para se submeter ao que a Presidência chama de “exame médico de rotina”. Após os protestos, o único gesto de Buteflika aos manifestantes foi destituir no sábado seu diretor de campanha, Abdelmalek Sellal. Nas redes sociais, a notícia foi vista com indignação e sarcasmo. “Estão mijando em nossas cabeças”, disse um internauta argelino.
No domingo, havia muitos fatores para pensar que o regime ignoraria a reivindicação da rua. No sábado à noite, o jornal oficial El Mudjahid, órgão do governo da Frente de Libertação Nacional (FLN), publicou a declaração da herança de Buteflika, conforme estipulado por lei.
Entre seus bens, o presidente declarou possuir uma casa em Sidi Fredj (localizada a 30 quilômetros de Argel), bem como outra casa e um apartamento na capital. Também possui dois veículos particulares. Em sua declaração ele precisa que não tem outra propriedade na Argélia ou no exterior. Em Marrocos, o site digital Le360 indicou que o presidente argelino evitou mencionar se possui contas bancárias, joias ou obras de arte.
Protestos contra o regime
A admiração obtida por Buteflika há 20 anos, quando se tornou presidente após a guerra civil, se transformou em irritação para boa parte da população. Entre os cartazes vistos em manifestação na sexta-feira um dizia: “Tenho 30 anos. Só conheci 10 anos de terrorismo e 20 de Buteflika”. A maioria dos protestos ocorreu de forma pacífica, com exceção do final da manifestação em Argel. Uma pessoa morreu e 183 ficaram feridas durante os confrontos com as forças de segurança.
O desespero aumentou desde 2014, no último mandato de Buteflika, quando o regime foi atingido pela queda dos preços do petróleo, de onde vem 97% de seus rendimentos em exportações. Os protestos foram ganhando corpo contra Buteflika a partir do ano passado nos estádios de futebol. Os jovens criticavam o imobilismo e a corrupção de um regime que só lhes dava como opções arriscar a vida em uma balsa ou viciar-se em droga. Dos estádios as críticas passaram às redes sociais. E das redes saltaram às ruas na sexta-feira 22 de fevereiro.
A história poderá absolver Buteflika como o homem que garantiu duas décadas de paz em um país que em menos de meio século viveu uma guerra de independência (1954-1962) e outra civil (1992-1999) com mais de 100.000 mortos (algumas fontes dizem ser 200.000). Após a chamada “década sombria”, Buteflika fez com que muitos jihadistas fossem indultados, islamitas fossem incorporados às esferas políticas e econômicas diluindo dessa forma sua força. Quando chegou ao poder, em 1999, seu primeiro objetivo foi semear a paz e mantê-la. Levantou seu pedestal e escudo contra as críticas ao redor da palavra estabilidade.
Mas a história também poderá condená-lo como o estadista que se aferrou à presidência ao sofrer um derrame em 2013, como o rosto visível de um poder impenetrável, uma oligarquia deslumbrada por preservar seus privilégios. Não teria sido possível manter esse imobilismo pétreo durante 20 anos sem o apoio tácito da França, que não quer sofrer nenhuma diáspora de argelinos, e a Espanha.
Até mesmo seus detratores elogiam a astúcia de Buteflika para manipular tanto a opinião pública como seus aliados e rivais. Esse homem baixinho, que mal conheceu outra profissão e formação que não fosse a militar e a política, soube se impor pouco a pouco sobre os clãs do verdadeiro poder na sombra, sobre os militares e sobre os todo-poderosos serviços secretos. Em 2001, quando a primavera árabe varreu quase todos os autocratas do norte da África, Buteflika não se abalou. Utilizou um método tão simples e eficaz como aplacar uma juventude desempregada com créditos fornecidos com enorme facilidade e quase sem compromisso de pagamento. Além do cansaço de distúrbios violentos sofrido pelo país após a década de noventa.
Mas a paz que a Argélia de Buteflika viveu é relativa. Os controles da polícia nas estradas e nas ruas das principais cidades são constantes e a ameaça jihadista nunca se dissipou. Em 2015, o Exército matou 109 terroristas e prendeu 36; em 2016 foram mortos 125 e presos 225. Em 2017 foram 91 os mortos e 40 presos. De 1999 a 2016 foram perseguidas por crimes de terrorismo 55.000 pessoas, de acordo com o Ministério da Justiça. Apesar de tudo, também existem argelinos que afirmam que sem Buteflika tudo teria sido pior.
Buteflika nasceu em 1937 na cidade marroquina de Uchda, a cinco quilômetros da fronteira com a Argélia. Seus pais eram originários da cidade argelina de Tlemcen. Foi o segundo filho de um total de cinco irmãos, uma irmã e três irmãs do segundo casamento de seu pai. Passou sua infância e adolescência em uma casa de 350 metros quadrados. Tinha 17 anos quando a guerra de independência começou. Em 1956, com 19 anos, atravessou a fronteira para se juntar à Frente de Libertação Nacional (FLN), que dois anos antes havia iniciado a luta armada contra a França. No final do conflito, com somente 25 anos, foi nomeado ministro da Juventude, Esportes e Turismo. E com 26, das Relações Exteriores. Enquanto forjava sua fama de dandy, de homem do mundo com boas maneiras, mantinha sua influência na cúpula do FLN.
Buteflika foi um dos principais gestores do golpe de Estado sem derramamento de sangue que levou à substituição do primeiro presidente do país, Ahmed Ben Bela (1963-1965), por Houari Bumedian (1965-1978). Em 1976, Bumedian e Buteflika reconheceram a República Árabe Saaraui Democrática (RASD) e romperam relações diplomáticas com Marrocos. A morte de Bumedian em 1978 o apeou do poder. O novo presidente, o coronel Chadli Bendjedid (1979-1992), o foi relegando a cargos simbólicos até que em 1981 o Tribunal de Contas do Estado o acusou de malversação de verbas. Em 1983, exilou-se voluntariamente nos Emirados Árabes Unidos, França e Suíça, mas no final da década de 1980 voltou ao seu país e em 1990, aos 53 anos, casou-se com Amal Triki, filha de um embaixador aposentado.
A vitória da Frente Islâmica de Salvação (FIS) no primeiro turno da eleição legislativa de 1992 desencadeou um golpe militar apoiado pelo Ocidente, e daí a guerra, e com ela o assassinato maciço de civis por parte dos grupos islâmicos e também do Exército. E, depois da guerra civil, a cúpula militar se viu na necessidade de melhorar a imagem do Estado perante o mundo e depositou sua confiança em um civil que tinha na época 62 anos, fama de hábil negociador e reconhecimento internacional.
Buteflika se apresentou às eleições como independente, mas todo mundo sabia que era o homem escolhido pelos militares. Naquele pleito presidencial de 1999, foi o único dos candidatos que dispunha de um Boeing 737 para percorrer o país mais extenso do continente. Não era um orador brilhante, mas conseguiu que sua mensagem fosse ouvida. Frente a um público formado às vezes por centenas de camponeses analfabetos, Buteflika falava de reconciliação e de unidade nacional citando Voltaire, Rousseau e Montesquieu.
Ganhou essas eleições e as de 2004. Depois revogou o artigo 74 da Constituição, que limitava o poder do presidente a dois mandatos de cinco anos. Pouco a pouco, foi se desfazendo tanto de seus mentores como de seus principais inimigos, de todos os que dirigiam à sombra os principais fios do país. Ao cabo de quatro mandatos consecutivos, Buteflika se tornou o presidente que mais anos se manteve à frente do país e o que mais poder monopolizou desde que Argélia se tornou independente.
Quando todos o davam por moribundo, Buteflika – talvez com a indispensável ajuda de seu irmão – empreendeu entre 2014 e 2016 a confrontação com a poderosa e temida Direção de Inteligência e Segurança (DRS, na sigla em francês), o serviço secreto militar, um Estado dentro do Estado, que ele acabou dissolvendo.
Para seus defensores, Buteflika não foi só o homem que instaurou a paz, e sim quem impulsionou a construção de grandes infraestruturas nacionais, pôs a Argélia no mapa das relações internacionais, soube manter boas relações com a França, a Rússia e os Estados Unidos e preservou uma política social que sempre buscou favorecer os mais necessitados. Tudo isso sem a necessidade de se endividar no exterior, algo de que o regime sempre se vangloriou.
Entretanto, para seus detratores, Buteflika foi um autocrata sem coragem para empreender as reformas liberais necessárias à economia do país, muito dependente dos combustíveis, Para eles, o presidente não soube aproveitar os anos de bonança com os preços do petróleo em alta, não instaurou medidas de transparência para combater a corrupção endêmica e não soube se aposentar a tempo.
A história irá fazendo seu trabalho. Mas a rua já pronunciou sua sentença: “Fora Buteflika”.
O misterioso estado de saúde
Os problemas de saúde de Abdelaziz Buteflika o atormentam desde 2013, quando já surgiram dúvidas sobre se era realmente ele quem segurava as rédeas do país ou seu irmão caçula, Said, 21 anos mais jovem. Em 2005, ele já tinha sido operado em Paris de uma úlcera hemorrágica, que segundo a embaixada dos Estados Unidos em Argel era na verdade um câncer de estômago. Mas o golpe mais demolidor veio em abril de 2013, quando sofreu um derrame cerebral que o manteve internado durante 80 dias em Paris. Aquilo marcou um antes e um depois no horizonte político argelino. Desde então, foram raríssimas as ocasiões em que ele se deixou ver. Não ia às cúpulas internacionais, e visitas de chefes de Estado eram canceladas na última hora, como no caso da chanceler alemã, Angela Merkel, em fevereiro de 2017. Suas mensagens eram divulgadas apenas por escrito. Nas poucas ocasiões em que aparecia em um vídeo gravado, sua voz não era ouvida. Nos círculos políticos e diplomáticos argelinos, começou-se a falar do “estado vegetativo” do presidente, e os nomes de possíveis sucessores eram cogitados.
Tudo o que diz respeito com a saúde do presidente virou um mistério. Nunca se sabia quantas horas trabalhava por dia ou por quantas horas ficava consciente.
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