_
_
_
_

O segundo assassinato de Leon Trotski: historiadores contra a série da Netflix

Historiadores e intelectuais criticam em peso a nova série biográfica do bolchevique, na Netflix, por considerá-la “propagandística”

Em vídeo, o trailer de 'Trotski'.
Mais informações
Uma revolução incolor
Cem anos depois, o Kremlin teme a revolução
A enganosa distância da história russa

Sigmund Freud pousa o braço sobre o ombro de León Trotski. O revolucionário russo acaba de atacá-lo durante uma de suas famosas conferências na Viena dos princípios do século XX. Agora, já distante da vista do público, é o pai da psicanálise quem o critica. “Durante nosso enfrentamento, notei que suas pupilas se dilatavam. Só vi essa reação em dois tipos de homens: os assassinos em série e os fanáticos religiosos”, cutuca.

Essa conversa nunca ocorreu, mas milhões de pessoas a viram. É uma das cenas de Trotsky, a série distribuída pela Netflix, mas produzida pelo principal canal estatal russo, controlado pelo Kremlin. E é assim que ela retrata seu protagonista: como um sádico, um completo traidor, um fantoche. Trotski, revolucionário proscrito, chefe do Exército Vermelho, demonizado depois como “inimigo do povo” e assassinado por um agente soviético em 1940 no México, é o vilão da sua própria história. Aparece sob um prisma tão negativo que uniu historiadores, estudiosos e a família do revolucionário em acusar os autores da superprodução não só de falsear a história, mas também de utilizar a figura do bolchevique para mandar um recado: que a dissidência e as revoluções são ruins.

“É um exemplo de como não tratar a história, em particular a do movimento revolucionário russo”, diz Alexander Reznik, professor da Escola Nacional de Economia da Rússia, que pesquisou a fundo a vida de Trotski. “[A série] é falsa, tergiversa constantemente os fatos conhecidos para construir um ‘tipo ideal de revolucionário’ [palavras de um dos produtores]: uma imagem clichê e simplista de um fanático faminto por poder, cego aos sofrimentos de sua família”.

A produção, de oito capítulos, estreou em 2017 na Rússia, coincidindo com o centenário da Revolução. Depois deu o salto mundial com a Netflix, através da qual pode ser vista por mais de 139 milhões de assinantes. Um deles foi Esteban Volkov Bronstein, neto de Trotski e guardião de sua memória. “O personagem que eles fabricaram é uma falsificação histórica. Está a anos-luz do revolucionário marxista que conheci. Um homem de uma inteligência extrema, muito cordial, trabalhador incansável, inclinado a educar os jovens e que gerava um ambiente caloroso ao seu redor”, conta ao EL PAÍS no jardim da casa da Cidade do México onde seu avô foi assassinado (e que agora é um museu).

Os responsáveis, do diretor para baixo, se defendem alegando que não se trata de uma série histórica, e sim meramente baseada em fatos reais. “Não podemos saber tudo o que aconteceu naquele momento, mas passamos muitas horas com consultores. E sobre a base deste conhecimento e inspirados em várias histórias e fatos os autores teceram uma história sólida que prende o espectador”, defende Alexandra Remizova, uma das responsáveis pela produtora Sreda.

Os herdeiros de Trotski organizaram uma campanha de repúdio, apoiada por dezenas de intelectuais e figuras públicas como Slavoj Zizek, Frederic Jameson e a filósofa Isabelle Garo. Antes, a família do bolchevique – exilado errante antes de ir parar no México – havia proibido, depois de ler o roteiro, que a casa-museu fosse usada como locação para a série, como desejava a produtora. Entre as muitas falsidades que encontraram naquele roteiro: que Ramón Mercader, seu assassino, era amante de Frida Kahlo, que se fez passar por seu biógrafo, e que o assassinato ocorreu em defesa própria (isso deixou Volkov Bronstein especialmente irritado).

“É, além do mais, um crime contra o México, que investigou e ditou sentença sobre o crime”, aponta Volkov. “Mercader foi pouco a pouco ganhando a confiança de pessoas próximas à família. Só visitou duas vezes o escritório do meu avô, e o matou à traição. A versão da série se parece muito com a que foi difundida durante anos pelo stalinismo, segundo a qual tinha sido uma briga com um partidário decepcionado.” Mas, diferentemente de outras mensagens propagandísticas stalinistas, esta série – repleta de sexo, violência e efeitos especiais – custou uns quatro milhões de dólares (15 milhões de reais), levou quatro meses para ser gravada e contou com um grande elenco de celebridades russas, como Konstantin Khabenski. Foi exibida em horário nobre no principal canal estatal. E colheu importantes prêmios nacionais.

Também há duras recriminações de quem vê a série como mais uma iniciativa de propaganda do Governo russo. Outra forma de assassinar Trotski, desta vez não com uma picareta de montanhismo, como fez Mercader, e sim com a revisão da sua memória. “A mensagem do Kremlin é que todas as revoluções são ruins, e especialmente as financiadas do exterior”, diz a organização de direitos humanos Memorial. Porque outra tese que emana do polêmico roteiro é o suposto apoio financeiro da inteligência alemã aos bolcheviques. “Trotski continua sendo uma das figuras mais demonizadas da história russa, por isso é mais seguro fazer um filme sobre ele do que sobre Lênin ou Stálin”, comenta o especialista Reznik.

Trotski desempenhou um papel determinante na revolução bolchevique de 1917. Mas o nome e a história desse brilhante orador e teórico marxista, que teve que se exilar em 1929 por causa dos seus atritos com Stalin, foi tabu durante toda a época soviética, enquanto se convertia em ídolo da esquerda radical ocidental. Foi reabilitado só depois da queda da URSS. O Leon Trotski da série é um homem obcecado pelo poder, de uma astúcia maquiavélica, disposto a matar um militar leal por ciúmes, a acabar com a vida de camponeses e milicianos que se opunham a suas diretrizes. Capaz inclusive de usar seu próprio filho como escudo humano. “As vidas são tijolos no edifício da revolução, no curso imparável da história”, diz o personagem em outra cena da série, que também foi tachada de antissemita (Trotski era judeu).

O revolucionário proscrito, o chefe do Exército Vermelho, teve além disso uma vida excepcional. E os criadores da série exploram motivos “exóticos”, como seu romance com a pintora Frida Kahlo, como observa Reznik. Konstantin Ernst, diretor do Canal 1, um dos mais vistos no país, e um homem muito próximo ao Kremlin, comentou na época da estreia da série que Trotski “é um verdadeiro rock star. Durante toda sua vida, não só durante a Revolução de Outubro. Quando você olha os óculos, as jaquetas de couro especialmente desenhadas e o trem blindado que foi usado na produção… É quase uma história ciberpunk. Achamos que é um personagem que pode ser compreensível para o público mais jovem”. E esse foi o gancho usado.

Os herdeiros de Trotski não têm planos de mover uma ação judicial contra a produtora ou os roteiristas da série. Na verdade, encaram esta nova polêmica como uma oportunidade para que sua verdadeira história seja reconhecida. No último mês, o número de visitantes à casa museu aumentou.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_