_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Uma psicóloga em um campo de refugiados no Líbano

Miriam Slikhanian, do MSF, compartilha as experiências de trabalho com refugiados no campo de Shatila, ao sul de Beirute

Vista do campo de refugiados de Shatila, perto de Beirute.
Vista do campo de refugiados de Shatila, perto de Beirute.Elisa Fourt/MSF

Há dois anos, comecei a trabalhar como psicóloga na clínica do Médico Sem Fronteiras no campo de refugiados de Shatila, em Beirute. Eu esperava que a maior parte do meu trabalho fosse estar relacionada a traumas psicológicos das situações que os levaram ao deslocamento, mas logo descobri que estava mais voltado a ajudá-los no desafio diário de viverem como refugiados.

O acampamento de Shatila foi originalmente criado para refugiados palestinos em 1949. Atualmente, abriga refugiados sírios e palestinos e também outras minorias, como etíopes e filipinos. Todos vivem em condições deploráveis.

Mais informações
Mil refugiados sírios de volta para casa em apenas um dia
O mundo através de um véu islâmico

As pessoas aqui são privadas do atendimento de suas necessidades mais básicas. Ser refugiado geralmente significa lutar todos os dias para encontrar algo para comer, para estar em um lugar seguro, para ser respeitado e ter o espaço para se desenvolver como a pessoa que deseja ser.

Além da história sombria de trauma, perda de entes queridos, do lar e dos pertences, além do deslocamento para uma terra estrangeira, eles enfrentam uma luta diária para satisfazer as necessidades mais básicas. Eles também enfrentam humilhação e discriminação e vivem com uma incerteza constante sobre o futuro.

Entre os pacientes da clínica de MSF em Shatila há um grande número de refugiados sírios, especialmente mulheres, em busca de serviços de saúde mental. As mulheres aqui são, às vezes, as vítimas dos próprios maridos, que nelas despejam a própria angústia. Muitas delas sofrem violência regularmente –seja social, econômica, verbal ou física. Às vezes é dito a elas que permaneçam caladas e fortes, não importa o que elas sintam por dentro. Elas trabalham duro pelos maridos e filhos enquanto carregam a dor no peito em silêncio. As mulheres, cujas vozes e lágrimas mal podem ser ouvidas, absorvem os cuidados e a compaixão que recebem como um solo seco que absorve a chuva.

Como vítimas de violência, algumas também tendem a descontar as próprias angústias nos filhos. No entanto, por meio das lágrimas de arrependimento, sou capaz de ver o amor e a compaixão que elas têm pelas crianças.

O MSF tem fornecido apoio psicológico gratuito aos refugiados em Shatila desde 2013. Um número de psicólogos, incluindo eu, fornece apoio individual, familiar e de grupo para indivíduos de todas as idades. Em 2017, mais de 3 mil sessões individuais de saúde mental foram oferecidas aos pacientes em Shatila e em outro campo de refugiados vizinho, chamado Burj Al Barajneh.

Ver um sorriso em um rosto fragilizado é o suficiente para saber que esse trabalho vale a pena

Os pacientes que vejo todos os dias têm vários sintomas. Os problemas de saúde mental que apresentam são, em grande parte, causados por eventos estressantes e pelas situações em que vivem. Depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático são reações muito comuns.

Eu os ajudo a lidar com os problemas emocionais ou psicológicos ouvindo com empatia e validando seus sentimentos. Eu os educo sobre os sintomas e o impacto de eventos estressantes, e ensino maneiras de superar suas dificuldades que possuem no aspecto da saúde mental. Confidencialidade e privacidade são fundamentais em nossas sessões. Frequentemente trabalhamos em grupos multidisciplinares de assistentes sociais, médicos e enfermeiros, para garantir o bem-estar físico, psicológico e social de nossos pacientes.

Trabalhar como psicóloga em Shatila é um desafio porque, ao contrário de outros lugares onde trabalhei, os problemas aqui não estão puramente relacionados à saúde mental. É um desafio ajudar uma pessoa com um problema de saúde mental se o problema maior for o de não poder alimentar seus filhos ou encontrar um lugar seguro para ficar.

Trabalhando aqui com o MSF, aprendi que os refugiados estão presos em um limbo entre o passado e o presente. Por um lado, anseiam estar em seus países, nas próprias casas, com seus entes queridos. Mas não é uma escolha para eles quando suas casas não existem mais, quando estão em constante risco de morte ou não têm meios de se sustentar. Por outro lado, eles querem estar em um lugar seguro. Mas eles estão lutando diariamente para encontrar comida suficiente para comer, um lugar seguro para abrigar e pessoas que os consideram com respeito.

Um efeito de cura

De muitas maneiras, meu trabalho com refugiados tem um efeito de cura em mim. Eu lembro dos dias em que tive que lutar contra as lágrimas enquanto estava trabalhando. Mas, ao mesmo tempo, receber pacientes pela minha porta, mostrar compaixão pela dor, receber gratidão por ser ouvida e receber o sorriso deles depois elevou meu ânimo.

Minha recompensa por trabalhar aqui é ver como a vida das pessoas muda depois de receber nossos serviços. Eu vi pessoas começarem a aceitar a realidade da própria situação e desenvolverem resiliência. Eu vi pessoas que conseguiram mudar suas circunstâncias através de apoio psicológico. E eu vi pessoas que começaram a ter esperança na humanidade depois de perceber que havia alguém que se importava.

Meus amigos sempre me perguntam por que escolho trabalhar aqui, quando eu poderia trabalhar em um lugar muito melhor. Minha resposta é sempre a mesma: "Se todos dissessem isso, ninguém ajudaria pessoas que sofrem todos os dias de suas vidas".

Acredito que estou aqui por um motivo e farei minha pequena parte para o bem-estar das pessoas que sofrem. Para mim, ver um sorriso em um rosto fragilizado, um vislumbre de esperança em um coração sem esperança ou uma palavra de gratidão de lábios que estavam em silêncio é o suficiente para saber que esse trabalho vale a pena.

Miriam Slikhanian é psicóloga da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). A entidade começou a trabalhar em Shatila em setembro de 2013. Para atender às necessidades de sua população vulnerável, a organização atualmente administra uma clínica de cuidados de saúde primários e um centro de saúde para mulheres para fornecer serviços médicos gratuitos, incluindo cuidados de doenças crônicas, vacinação, serviços de saúde mental e pacote de saúde sexual reprodutiva.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_