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“Mataram meu filho e me mataram”

Uma semana de repressão aos protestos populares na Venezuela deixou 35 mortos e 976 detidos. A Polícia de Maduro não faz uso de equipes antimotim, mas de agentes com armas de fogo

O velório de Nick Samuel Oropeza Borjas, de 19 anos, do bairro Macarao
O velório de Nick Samuel Oropeza Borjas, de 19 anos, do bairro MacaraoRaúl Romero

Em 8 de janeiro, Nick Samuel Oropeza Borjas completou 19 anos. Com a permissão da mãe, foi à manifestação de 23 de janeiro, na qual Juan Guaidó se proclamou presidente interino da Venezuela. Era a primeira vez que participava de uma atividade política. "Nunca o deixei ir a manifestações porque era menor. Desta vez, já era maior de idade, e eu deixei. Era ideia dele e foi com meu irmão e outros parentes", diz a mãe, Ingrid Borjas. O dia transcorreu normalmente. Nick voltou contente e contou que havia conhecido a líder da oposição María Corina Machado em Chacao, e tirado várias fotos com ela. Passou a tarde com amigos da vizinhança, no bairro de Macarao (oeste de Caracas), e à noite disse à mãe que voltaria para casa. No caminho, no entanto, fez um desvio.

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Moradores do bairro tinham iniciado um protesto, algo que quase não se via naquele setor popular e tradicionalmente chavista. Bloquearam a rua e queimaram lixo, como vinha acontecendo em outros bairros de Caracas e no interior do país desde o começo da semana. "Ele foi com alguns amigos até lá, por curiosidade. Estavam correndo. Os ânimos estavam aquecidos. As pessoas atiravam pedras na Guarda Nacional, que tentava limpar a via, os militares recuaram, mas depois voltaram, alguns disparando para o ar e outros para pessoas que se aproximavam do protesto", disseram testemunhas a Borjas.

Nick recebeu três dessas balas. Uma perfurou o pulmão. Em um centro de saúde próximo, a mãe o encontrou vivo. Ele lhe disse que não conseguia respirar. "Quando o vi, o que fiz foi repreendê-lo, perguntar por que não tinha ido para casa. Não tinha percebido que havia uma poça de sangue sob a maca." Por falta de ambulâncias, foi levado em uma caminhonete para um hospital. Morreu sangrando no caminho. “Mataram meu filho e me mataram. Fazíamos tudo juntos, estávamos esperando que ele terminasse o colégio para ir ao Chile ficar com seu irmão que partiu há três meses. Nick queria ser gastrônomo", diz a mulher cheia de dor.

A morte de Nick é uma das 35 deixadas em uma semana de violenta repressão dos protestos desencadeados em meio à profunda deterioração econômica e social, e um descontentamento que aumentou com a crise institucional causada pela posse de Nicolas Maduro fora da norma constitucional, depois de eleições suspeitas de fraude, e que levou as forças da oposição a se apresentarem para uma transição política liderada por Guaidó. Seis mortos por dia, todos assassinados com armas de fogo.

Perseguição

Os assassinatos e quase mil prisões arbitrárias resultantes da ação policial nos últimos dias ficaram encobertos pelo véu de desinformação e impunidade, muitas ocorridas na escuridão da noite em áreas mais pobres. Nem Maduro nem seu aparato de justiça falaram a respeito. "Não se pode combater balas com pedras. As pessoas têm o direito de protestar e para aqueles garotos levados presos no bairro, espancados e derrubados com pauladas, onde está o devido processo?", pergunta Borjas, com os olhos marejados. Borjas, 48 anos, se tornou advogada nas missões educativas, um programa do Governo Hugo Chávez.

Um altar em memória de Alixon Osorio Dos Santos Pisani, assassinado em Catia
Um altar em memória de Alixon Osorio Dos Santos Pisani, assassinado em CatiaM. Castro

Johandry Calcurian, de 23 anos, empregado em uma loja de sapatos e pai de um menino de quatro anos, também foi morto em 23 de janeiro por supostos oficiais da Força Ações Especiais da Polícia Nacional, um braço da força criada pelo próprio Nicolás Maduro quando o ciclo de protestos de 2017 estava quase terminando. "Todos estes dias houve demonstrações pela falta de gás e das caixas de alimentos. Naquele dia, as pessoas continuavam protestando contra o Governo na área de Petare e, de repente, a FAES chegou atirando. Houve muitos feridos, e depois no bairro havia muitos velórios", diz a sogra dele, Yasmín González. A mulher mora no setor José Félix Ribas, onde na semana passada houve incursões violentas da polícia à procura de manifestantes. "Nós nunca tínhamos nos sentido tão sufocados com a ação da polícia, está caindo gente inocente, estão entrando nas casas quebrando grades que tanto custaram para as pessoas".

A advogada Delsa Solórzano, deputada da Assembleia Nacional, diferencia os protestos de 2019 dos anteriores pelo nível da repressão. "Em 2014, houve 43 mortes em vários meses de manifestações, enquanto nos sete dias de 2019 já temos quase a mesma quantidade. Não há dúvida de que a forma de repressão é mais brutal, que se destaca porque não é a repressão caracterizada pelo ataque com bombas de gás lacrimogêneo e munição contra as pessoas, mas a ação da polícia é comparável à de gangues de criminosos. O funcionamento da FAES é uma caixa preta ", explica a parlamentar, que trabalha na documentação de casos com ONGs para denunciá-los em instâncias internacionais.

Impunidade

O mural em memória de Alixon Osorio Dos Santos Pisani, feito por amigos e familiares, foi destruído no domingo, um dia depois de armado em Catia, uma área repleta de rostos de Hugo Chávez e pichações em favor da revolução. Pisani, 19 anos, foi morto por supostos agentes da FAES quando protestava contra o Governo de Maduro. Sua morte foi a primeira de 35 registradas em uma semana na Venezuela, resultado de protestos da oposição. “Ele era padeiro em Catia, não terminou o ensino médio, seu salário não era suficiente nem para pagar um corte de cabelo”, diz sua tia Nivea Pisani.

A mulher soube da morte do sobrinho por amigos dele. Achou que era brincadeira, mas depois no Hospital Periférico de Catia coube a ela fazer o reconhecimento. Os médicos se recusaram a lhe entregar o relatório forense e a polícia, muitos agentes com fuzis de assalto R15 e capuzes na cabeça, começou a atirar na porta do hospital. Pisani se escondeu por horas enquanto os policiais tentavam entrar à força, sem sucesso. Por fim, ela saiu pela porta dos fundos. Fez a denúncia à polícia investigativa, mas não tem esperança de justiça na Venezuela. "Se protestamos eles nos matam, se ficamos calados o Governo de Maduro prossegue. Quando se votou pelo chavismo as pessoas achavam que tudo iria mudar e haveria oportunidades para os pobres.”

Marino Alvarado, investigador da ONG de direitos humanos Provea, diz que a FAES age com total impunidade e sem controle. "Há uma série de irregularidades. A FAES é projetada para implantar o terror. Seu alto nível de letalidade é preocupante. São grupos que atuam com armamento de guerra em operações comuns. É ilegal manter os rostos ocultos, não mostram nenhuma identificação, eles também removem as placas dos seus veículos. Isso lhes garante impunidade perante a lei.”

Julieta Ovalles reconheceu o filho pelas fotos de suas tatuagens no necrotério do Hospital de San Cristóbal, em Táchira. Luigi Ángel Guerrero Ovalles, 24 anos, estudante de Comunicação Social, também foi à grande manifestação de 23 de janeiro nesse Estado do leste do país. "Ele saiu sem documento e telefone, para não ser roubado. Só levou uma mexerica. Nunca ia a passeatas, mas desta vez queria ir porque os ânimos estavam bons", diz a mãe. A demonstração em apoio a Guaidó transcorreu sem problemas, mas na dispersão começou o caos. Um grupo paramilitar, os chamados coletivos, agentes da FAES e da Guarda começaram a atirar. "Eu o imagino todo nervoso naquele momento, meu filho não estava acostumado com essas coisas. Ele quase não saia, sempre ficava em casa com seu computador.”

Julieta estava contratada como jornalista em uma agência governamental, mas, depois do que aconteceu, decidiu não voltar ao trabalho. "Não pretendo trabalhar para adular um governo que matou meu filho. Eu quero que seja feita justiça, porque desta vez saíram para matar pessoas.”

As crianças presas

Nicolás Maduro bateu um novo recorde de detenções arbitrárias: 976 pessoas foram presas por protestar contra seu regime, por acusações como obstrução de vias públicas, desacato à autoridade, incitação pública, conspiração (associação ilícita) e, nos casos mais graves, terrorismo. A FAES da Polícia Nacional é o órgão responsável pela maioria das prisões da semana passada, que elevam para quase 13.000 o número de detenções durante todo o seu mandato.

Entre os novos casos, há uma particularidade: 77 menores, muitos deles crianças, foram colocados atrás das grades ao serem presos em protestos de rua ou retirados de suas casas depois de se manifestarem –descobertos por supostas atividades de inteligência ou delação de vizinhos. "Eles são procurados em suas casas à noite, por meio de invasões violentas nas residências", disse esta semana Gonzalo Himiob, vice-presidente da ONG Foro Penal.

Detentos e advogados também relataram maus-tratos durante as prisões. "Eu dizia: ‘Não posso receber golpes na cabeça porque tenho ataques epiléticos'. E me gritavam 'Cale a boca, você é um prisioneiro’", disse Yickson González, 14 anos, preso em 23 de janeiro no Estado de Bolívar, no sul do país, e liberado uma semana depois. Há ainda cerca de uma dezena de menores e 700 adultos presos.

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