Cardozo: “Sem mediação para demarcar terras, teremos problemas gravíssimos”
Ex-ministro da Justiça petista diz ter previsto "retrocessos" na questão indígena por radicalização. Ele critica mudança do tema para pasta da Agricultura
O ex-ministro José Eduardo Cardozo diz ter sofrido "pressões constantes" e "brutais" de lideranças ruralistas contrárias à demarcação das terras indígenas ao longo dos cinco anos que esteve à frente do Ministério da Justiça petista, responsável por essa questão até o ano passado. Há dois anos distante de cargos públicos — desde o fim do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), Cardozo avalia como "desastrosa" a decisão do presidente Jair Bolsonaro em transferir as demarcações para o Ministério da Agricultura. A pasta é chefiada por Tereza Cristina da Costa, que antes de assumir o cargo liderava a bancada do agronegócio na Câmara Federal. A preocupação do ex-ministro se sustenta, diz, em bastidores de pressões. "Cerca de 60% a 70% da minha agenda de ministro da Justiça era dedicada à questão indígena", diz.
A gestão de Cardozo foi alvo de profundas críticas de entidades indigenistas pela lentidão nas demarcações durante o Governo Dilma, um dos que menos demarcou desde que a Constituição de 1988 reconheceu o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionais. O ex-ministro nega que isso seja fruto direto dessas pressões. Diz que as terras que ficaram pendentes de demarcação são as mais conflituosas e que sua estratégia no Ministério da Justiça era tentar mediar a violenta disputa fundiária protagonizada por indígenas e fazendeiros. Na última sexta-feira, Cardozo e o ex-presidente da Funai, Flávio Chiarelli, viraram réus por supostamente descumprirem um Termo de Ajustamento de Conduta que visava a conclusão de procedimentos administrativos para demarcar uma terra indígena no Mato Grosso do Sul. Na entrevista a seguir, Cardozo conta detalhes sobre a constante queda de braço entre indígenas e ruralistas na administração federal.
Pergunta. A transferência das demarcações da Funai para o Ministério da Agricultura traz prejuízos para a questão da demarcação da terra indígena no Brasil?
Resposta. Hoje, o que resta para ser demarcado, salvo várias exceções, são situações bastante conflituosas e portanto não podemos deixar a questão da demarcação vinculada a um ministério liderado por uma das partes envolvidas. A Funai [Fundação Nacional do Índio] sempre cuidou disso, mas vinculada ao Ministério da Justiça. Ou seja, o ministro da Justiça tinha um papel de zelar pela legalidade do procedimento, ouvindo inclusive as partes em conflito. Embora a Funai integre a estrutura do Ministério da Justiça, o órgão tem uma posição de estrito respeito à legalidade. Não foram poucas as vezes que eu fiz mesas de diálogo com lideranças indígenas e com representantes dos ruralistas. O Ministério da Justiça tem essa posição estrutural que lhe permite ter uma dimensão mais imparcial. Delegar as demarcações ao Ministério da Agricultura é desastroso porque a influência dos que não querem as demarcações será proeminente.
P. Como ministro da Justiça no Governo Dilma, o senhor sentia pressões da bancada ruralista em relação às demarcações?
R. Eles iam frequentemente ao ministério me pressionar. Aliás, fizeram até a CPI da Funai para incriminar a mim e a procuradores da República, dizendo que estávamos cometendo delitos ao demarcar as terras. Era uma pressão brutal. Fui várias vezes convocado ao Senado e à Câmara dos Deputados para prestar esclarecimentos porque eu prosseguia com as demarcações. Havia um clima de tensão permanente. Tínhamos acusações dos ruralistas como também tínhamos críticas de lideranças indígenas, que diziam que não devíamos tentar pacificar nada, mas implementar as demarcações. Só que isso podia gerar mortes e abusos. O que tentamos fazer foi um processo de mediação e viabilizar a demarcação de forma pacificada.
P. Como aconteciam essas pressões na prática? Quem procurava o senhor?
R. Deputados e senadores ruralistas. Muitas vezes traziam também deputados estaduais, prefeitos e produtores. Eu tive uma série de reuniões tanto com produtores quanto com lideranças indígenas em diversas regiões do Brasil porque era uma situação muito difícil.
P. Quais eram os métodos dessas pressões?
R. Veja, a representação dos ruralistas é muito forte no Congresso Nacional, então não poucas vezes havia ameaça de paralisar as votações importantes do Governo. Não poucas vezes eu fui ao Congresso para tentar evitar conflitos.
P. Quais são os reais interesses da bancada ruralista?
R. O que eles objetivamente sempre defenderam é a paralisação das demarcações das terras indígenas. São contra porque parte dessas terras está hoje sob a posse dos produtores, como eles chamam. Dos fazendeiros. Aí você tem um problema delicadíssimo porque a demarcação implica a saída desses ocupantes, e a Constituição não prevê indenização, só benfeitoria. Então alguém vai perder a terra. A situação fica um pouco mais complicada em algumas regiões do país onde eu tenho pequenos produtores porque aí é uma situação do excluído contra o excluído. Do pobre contra o pobre. Isso acontece muito na região Sul, na região de Santa Catarina e no Paraná. Agora, há outras situações que são grandes latifúndios, e estes latifundiários têm um poder econômico e político muito forte. Eles querem impedir as demarcações dizendo que as terras são deles. Às vezes, você tem títulos de propriedade antigos realmente, só que na origem você acaba reconhecendo que os índios foram expulsos daquelas terras, que houve um esbulho por parte dos fazendeiros, e o Governo precisa devolver essas terras aos povos indígenas. É aí que você tem o conflito.
P. O principal argumento de quem é contrário à demarcação diz respeito a fraudes no processo. Da forma como elas são feitas hoje, com vários estudos e fases, há espaço para isso?
R. O que às vezes acontece é a ofensa ao direito de defesa. Ou seja, não é intimada a parte que deveria se defender. Aí anula o processo. Então os processos precisavam ser instruídos. Algumas lideranças indígenas mais radicalizadas não entendiam porque não tinham as terras demarcadas se já tinham o laudo. O problema é que, se você não construir as provas, o Supremo anula. Não é paralisação. De outro lado, você tem os grandes produtores dizendo que tudo é fraude. É o conflito. É importante buscar um equilíbrio. Eu já dizia [diante das fortes pressões contra as demarcações]: tudo leva a crer que temos que procurar a mediação porque corremos riscos de retrocessos. Não adianta radicalizar. A tendência era ter retrocesso, está aí o resultado. Porque há uma concentração de forças de um lado muito forte.
P. É de fato possível garantir este direito dos indígenas negociando com os ruralistas, com grandes latifundiários?
R. Uso mais a palavra mediação em vez de negociação. A mediação busca alternativas que não significa que se negocie direitos. Vou dar um exemplo concreto que tivemos em Santa Catarina. Tínhamos a reivindicação de uma estrada que precisava ser alargada, mas esta obra provocaria efeitos em uma terra indígena. A obra estava paralisada por anos, e pessoas morriam nessa estrada. Por outro lado, a gente não podia ferir os direitos dos indígenas. Fizemos uma mesa, discutimos como podia ser feito, e chegamos a um entendimento. O Governo do Estado acabou desapropriando uma área próxima, que os indígenas concordaram em ocupar provisoriamente enquanto era feito o alargamento da estrada. Foi tudo feito com entendimento. Eu tinha dois interesses públicos colocados. Ninguém abre mão do direito na mediação. Isso pode e precisa ser feito. A gente buscava, por exemplo, formas indenizatórias. Antes do impeachment, a gente discutia justamente a busca de um fundo nacional indenizatório para pessoas que eram removidas das áreas. Isso é mediação.
P. Entidades indigenistas avaliam que o Governo Dilma paralisou as demarcações, já que foi um dos governos que menos demarcou desde a redemocratização. Houve uma abertura à bancada ruralista?
R. Os governos começaram a demarcar, mas depois de um tempo começaram também a esbarrar em casos que envolvem conflitos violentos e ações judiciais. Não foram poucas vezes que eu mandei a Força Nacional ou até mesmo as Forças Armadas para ajudar a solucionar esses conflitos por conta das demarcações. É uma situação que às vezes assume uma dimensão social muito grave, e por isso, no meu período como ministro, começamos a fazer uma busca por processos de demarcações pacificadas, buscando a conciliação como forma de viabilizar essas demarcações. Em Santa Catarina, nós conseguimos. No Mato Grosso do Sul, tivemos mais dificuldade. Mas estou absolutamente convencido de que, sem mediação para as demarcações, vamos ter problemas gravíssimos.
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