Crivella suspende salários e faz Rio flertar com calote geral

Rejeitado por 72%, prefeito enfrenta falta de caixa, desmantela atenção básica de saúde e adia pagamento dos servidores. "Recessão muito longa evidencia a questão dos gastos com pessoal”, explica economista

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, em agosto de 2019.Fernando Frazão (Agência Brasil)

A crise financeira que se arrasta ao menos desde 2017 nas contas da prefeitura do Rio de Janeiro ― e desde 2015 nas contas do Governo estadual ― entrou em nova etapa nesta terça-feira, com o flerte da gestão Marcelo Crivella (Republicanos) com um calote geral. Em resolução assinada pelo secretário da Fazenda Cesar Augusto Barbiero, todas as movimentações do tesouro municipal, o que inclui o pagamento de todos os salários e contratos, estão temporariamente suspensas. A medida veio com o objetivo de, segundo a Prefeitura, ajustar as contas municipais, recém afetadas por uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho que bloqueou mais de 200 milhões de reais dos cofres da cidade para o pagamento dos profissionais da Saúde terceirizados via Organizações Sociais (OSs). “O procedimento é pontual e pode ser revertido a qualquer momento”, disse a Prefeitura em comunicado.

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A suspensão significa, por exemplo, que aposentados e servidores municipais ficaram sem a segunda parcela de seu 13º salário, que deveria ter sido depositado nesta terça. Também não têm previsão de receber o salário de dezembro em janeiro. Mesmo o pagamento de salários atrasados estão suspensos. Faltando menos de um ano para as eleições municipais, Crivella assiste à rede municipal de saúde colapsar no mesmo ritmo que sua rejeição aumenta ― se encontra em 72%, segundo a mais recente pesquisa Datafolha. As clínicas da família, dedicadas a atenção primária e expandidas durante o Governo Eduardo Paes (2009-2017), vêm sendo desmontadas desde o início da atual gestão, que alega incapacidade de arcar com os custos herdados de seu antecessor. O atraso no pagamento de salários para os profissionais terceirizados gerou uma greve que entrou em seu oitavo dia nesta terça.

O cenário não é novo: a cidade que é o principal cartão postal do Brasil em todo o mundo foi especialmente golpeada pela desaceleração econômica a partir de 2015, afetando primeiramente as contas do Governo estadual. A queda na arrecadação se agravou no território fluminense por causa da perda de receitas com a produção de petróleo e de isenções fiscais generalizadas, ao mesmo tempo que os anos de bonança, na esteira dos grandes eventos como Copa e as Olimpíadas, trouxeram um aumento vertiginoso dos gastos obrigatórios com o funcionalismo e em programas de governo. Seguidas manifestações de servidores empobrecidos começaram então a fazer parte da paisagem urbana da capital Rio de Janeiro. Sem dinheiro para arcar com médicos e despesas, os grandes hospitais estaduais definharam e só passaram a entender emergências graves. Algumas unidades chegaram a ser fechadas. As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), modelo de atendimento primário inaugurado no Rio e uma das principais políticas públicas do Governo Sérgio Cabral, também restringiram seus atendimentos.

A economista Vilma Pinto, especialista em finanças públicas da FGV-IBRE, pondera que é cedo para chamar a suspensão dos pagamentos de calote, uma vez que eles podem acabar configurados como “restos a pagar” e honrados num futuro próximo. Ela ainda explica que a dívida do município do Rio aumentou até 2017 e se encontra hoje em 17,5 bilhões de reais, dos quais 9,8 bilhões são de instituições financeiras nacionais e 4,6 bilhões são de entidades internacionais. O grosso é relativo a empréstimos e financiamentos, ainda que haja também parcelamentos previdenciário e tributário, refinanciamento com a União, dívidas contratuais, entre outros.

Apesar das cifras aparentemente altas, Pinto argumenta que se encontram consideravelmente abaixo do limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. “A crise que os Estados e municípios vem enfrentando está muito mais relacionada a uma questão de fluxo do que uma questão de estoque (endividamento). A recessão econômica foi muito longa e a queda nas receitas contribuiu para um desequilíbrio mais forte, evidenciando questões estruturais importantes, como a questão dos gastos com pessoal”, explica. Contudo, ela chama atenção para o fato de que a credibilidade da cidade do Rio, que depende da avaliação capacidade de pagamento de sua dívida. Essa confiança era baixa mesmo antes da medida desta terça. “O município tem a nota C no CAPAG [índice do Tesouro Nacional que mede capacidade de pagamento de estados e municípios], o que já indica que a União não deve conceder garantia para empréstimos e financiamentos”, explica. Apenas as notas A e B atestam que o ente está apto a receber esta chancela da União."

Guerra política e campanha antecipada

Crivella assumiu o cargo em janeiro de 2017 avisando que faria uma gestão de “vacas magras”. Desde então tem colocado a culpa da crise em seu antecessor, Eduardo Paes (DEM), a quem acusa de ter deixado um rombo nas contas como herança: uma dívida de 4 bilhões de reais, pagamentos a fornecedores adiados e compromissos financeiros que não poderiam ser cumpridos. Paes nega as acusações, sempre alegando que sua gestão seguiu exemplar e manteve os serviços públicos funcionando enquanto que o resto do Estado vivia uma severa crise. Na ocasião, a Prefeitura chegou a emprestar 100 milhões para o governo estadual. Em junho do ano passado, o Tribunal de Contas do Município concluiu que Paes terminou seu mandato com as contas superavitárias.

Acuado e impopular até mesmo entre o eleitorado evangélico, o prefeito, que é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, também provoca críticas por causa de medidas autoritárias. Em setembro deste ano, Crivella determinou que fiscais municipais recolhessem livros com temas ligados a homossexualidade, uma medida vista como censura homofóbica que acabou bloqueada pelo Supremo Tribunal Federal. Nas últimas semanas, o político também redobrou o enfrentamento aos meios de comunicação do Grupo Globo ― concorrência direta da Record, de seu tio Edir Macedo ― e proibiu que seus jornalistas participem de coletivas de imprensa ou sejam atendidos por profissionais de comunicação da Prefeitura. A tensão com a Globo se assemelha ao enfrentamento que o presidente Jair Bolsonaro mantém com a emissora. Em um cenário eleitoral pessimista para Crivella, que apareceu em terceiro lugar no Datafolha, atrás de Paes e do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL) e em empate técnico com outros nomes, o prefeito parece buscar reunificar sua base conservadora e conseguir apoios políticos.

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