Polícia é responsável por quase um terço dos homicídios na Venezuela

Cifra de mortes fica em 81,4 por 100.000 habitantes neste ano, superando El Salvador e Honduras, que tiveram melhoria em seus indicadores de violência

Cortejo fúnebre de Christian Charris, assassinado por policiais, em setembro.Roman Camacho (Getty)
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A Venezuela chegou em 2018 ao primeiro lugar no alarmante ranking dos países mais violentos da América Latina. Desde o começo do ano, o país soma 23.047 homicídios, uma taxa de 81,4 por 100.000 habitantes, o que o coloca como o mais letal da região, acima de El Salvador e Honduras, segundo os dados reunidos pelo Observatório Venezuelano da Violência. Perante a opacidade das estatísticas oficiais, esta entidade e oito universidades medem ano após ano a magnitude do problema numa nação que continua sangrando pela violência, exacerbada pela pior crise econômica, política e social de sua história.

Em 2017 estivemos em segundo lugar, mas nossos colegas pesquisadores em Honduras nos disseram que a taxa neste ano ficará em metade da venezuelana, e os de El Salvador afirmam que lá será próxima dos 60 homicídios por 100.000 habitantes, destacou nesta quinta-feira o sociólogo Roberto Briceño León, diretor do Observatório, ao apresentar o relatório. A taxa, inclusive, é maior que a do Brasil, de 30,8 mil mortes violentas por 100 mil habitantes, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A cifra bruta – 23.047 mortes violentas – esconde outra ainda mais preocupante: 10.422 delas são claramente homicídios, mas outras 7.523 correspondem ao que a polícia classifica como resistência à autoridade. Em outras palavras: quase um terço dessas mortes ocorreu nas mãos das forças de segurança, em muitos casos em episódios de execuções extrajudiciais. O resto – 5.102 casos – está ainda sob o denso véu da averiguação.

O Governo estabeleceu que a única política para [solucionar] o problema é [fazer] desaparecer delinquentes, em vez de reduzir a delinquência. Desde 2015 vemos com preocupação uma política de extermínio dos delinquentes, um aumento da ação repressiva que não inclui o fortalecimento da segurança pública e vai contra a institucionalidade e os direitos humanos, disse Briceño León na apresentação do estudo.

O trágico recorde foi alcançado apesar da redução da taxa, de 89 assassinatos por 100.000 habitantes registrada em 2017. Os motivos que explicam essa redução também passam pela aguda crise venezuelana. O diretor do Observatório Venezuelano da Violência sugere que a política repressiva acima mencionada de “acabar com os homicidas” resultou em uma redução do número de homicídios, embora sua legalidade e respeito aos direitos humanos “estejam em questão”.

O empobrecimento da população de um país que já ultrapassa 12 meses sob o jugo da hiperinflação trouxe também uma mudança na modalidade do crime. “Muitas formas se tornaram pouco rentáveis para o delinquente, que opera em função dos benefícios que pode obter, dependendo do risco que corre e dos custos que deve pagar”, acrescenta Briceño León. Um terceiro elemento que está associado é a alta taxa de emigração: entre aqueles que deixam o país, principalmente os que estão em pior condição econômica, também estão muitas pessoas que pensariam em praticar crimes como uma forma de encarar sua difícil situação.

88% dos municípios, em situação de “epidemia”

Mesmo com a redução, 296 dos 335 municípios do país estão numa situação que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama de “epidemia”. Ou seja, registram taxas acima de 10 homicídios por 100.000 habitantes. A cidade mais violenta da Venezuela é El Callao, no estado de Bolívar, a área de mineração do sul do país. Essa população carrega o fardo de 619,8 mortes violentas por 100.000 habitantes, um número que coloca a pequena cidade no mesmo nível de Medellín na época de Pablo Escobar. A mineração legal e ilegal e a presença de grupos de guerrilha que participam do controle das fazendas fazem parte dos fatores que influenciam a alta prevalência de violência na região.

O estado mais violento é Aragua, na região central do país, a uma hora de carro da capital, Caracas. Sua taxa de homicídios é o dobro da nacional e a maior parte tem a ver com as chamadas mortes “por resistência à autoridade”. No início de dezembro, o assassinato de um adolescente de 13 anos que liderava uma gangue criminosa colocou em evidência o grau de penetração do crime na região. Além disso, o diretor do Observatório Venezuelano da Violência observa que outros estados como Sucre, na costa leste da Venezuela, e Trujillo, perto da Colômbia, começaram a aparecer neste ano entre os mais violentos por causa da expansão do tráfico de drogas.

As organizações criminosas na Venezuela, detalha Briceño León, tornaram-se mais rurais, assumindo nuances de guerrilha. E a produção agroalimentar tornou-se o novo butim do crime, o que provocou o aumento do seu preço final devido aos custos associados à segurança. “Não se trata de um fenômeno puramente urbano. Agora vemos gangues criminosas localizadas em áreas rurais, que saem às estradas e outras cidades para roubar, por isso vemos um vínculo importante entre o crime e as estradas do país”, conclui o pesquisador. “Por exemplo, na estrada para o leste, caminhões que transportam cargas são escoltados e se estão vazios, circulam com as portas do baú abertas para mostrar que não levam nada, evitando serem assaltados pelas gangues”.

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