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Eleições Brasil 2018
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Os riscos dos ‘outsiders’

A eleição de pessoas com pouca ou nenhuma experiência política e partidária é conhecida como 'outsiderism', mas nem sempre isso significa correr por fora da política

Joédson Alves (EFE)

A face mais visível da eleição no Brasil em 2018 é o grande número de novatos e outsiders. Para muitos, renovação política e punição à elite política imersa em escândalos de corrupção. Os discursos anti-Brasília e antissistema ungiram Jair Bolsonaro como seu porta-voz, a despeito de seus quase trinta anos em que fez parte do jogo como legislador. A renovação tsunami de 52% na Câmara dos Deputados e 85% no Senado abalou partidos e bancadas parlamentares. Além disso, alimentaram o sprint final dos outsiders competindo nos Estados.

A eleição de pessoas com pouca ou nenhuma experiência política e partidária, como Donald Trump, é conhecida como outsiderism. Nem sempre isso significa correr por fora da política. A eleição presidencial direta abre caminho para a vitória de outsider usando as próprias engrenagens que questiona. Os sistemas multipartidários ou com regras mais frouxas para a criação de novos partidos podem encurtar as rotas para o poder. Capturar um partido existente, como Bolsonaro (PSL), ou criar a sua própria máquina, como Amoedo (Novo), permite que candidatos se autosselecionem, evitando os riscos (e os concorrentes) da competição pela vaga.

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Novas lideranças certamente oxigenam a representação política e podem tornar as instituições políticas mais porosas às demandas dos eleitores. Mas, ser de fora do “sistema”, de fato ou por retórica, é suficiente para renovar a política, fortalecendo a democracia? Essa é uma onda que ganhou força nos últimos anos e já tem lições a ensinar. Sobre suas vitórias e, também, os desafios e os riscos que eles trazem junto. Obviamente, um outsider pode se converter em alguém “de dentro”, como aqueles sobre cujos pescoços construíram os seus apelos. Mas isso requer aquilo que lhes faltam: a prontidão e as habilidades para fazer política num ambiente de competição aberta. Assim, as vitórias de outsiders requerem atenção. Três pontos nos ajudam a entender quais são essas tensões e riscos.

Primeiro, outsiders não discutem as plataformas políticas durante a campanha. Como seus discursos são, basicamente, de crítica e rechaço da ordem estabelecida, slogans bastam. A sua tradução em diretrizes de governo tende a ser relegada. As soluções fáceis são mais atrativas quanto menos se preocupam em executá-las. Nessa eleição presidencial, as promessas de isenções de imposto de renda, atingindo bilhões de reais, e o silêncio sobre a crise fiscal do Estado foram emblemáticas dessas equações mágicas. Sob essas incertezas, o embate eleitoral não molda as expectativas sobre os rumos do governo. Deixando espaço para que elas atinjam o ponto máximo enquanto esperam a posse presidencial. Mas, se frustradas, essas expectativas tornam-se corrosivas da lua de mel entre o eleito, o congresso e seus eleitores. O risco de que isso ocorra é considerável, pois para compensar o vazio da sua plataforma eleitoral e marcar a digital de anti-establisment, o outsider tende a dar guinadas bruscas no status quo uma vez no governo. O choque dos eleitores com o “confisco da poupança” feito por Collor, no primeiro dia de governo em 1990, ilustra o ponto. O risco de um voluntarismo errático é considerável e pode deteriorar rapidamente as condições de governabilidade em vez de construí-las.

Segundo, o outsider chega ao poder com gaps informacionais consideráveis sobre a gestão da máquina e das burocracias que deve liderar. Delegar responsabilidades e apoiar-se em assessores é algo trivial nos governos contemporâneos. Mas isso requer de quem delega a “sabedoria” de liderá-los, sem se tornar prisioneiro dos interesses que seus auxiliares podem encarnar. Esse risco é maior para os outsiders que, desconfiados de partidos e burocracias, recorrem a assessores que julgam controlar. No melhor cenário, eles confiam em experts para tomarem decisões. No pior dos casos, nos amigos e familiares. Especialistas possam reduzir riscos acerca das políticas, mas são débeis em negociar acordos e concessões necessários para implementá-las. Aos amigos e cronies, normalmente, falta a expertise, ainda que sobre lealdade. Essa politização do comando do governo requer do presidente a capacidade de monitorar os seus agentes. Mas, para lidar com essas engrenagens que desconhece, o outsider tende a manter a vigília sobre os opositores, baixando a guarda para os seus assessores. Além de alimentar as suspeições acerca do governo, isso abre espaço para oportunismos diversos. São consideráveis os riscos de o outsider se ver desconectado ou insulado no topo da máquina que deveria liderar. Baixa coordenação das políticas e estreitamento das pontes com aqueles fora do governo são os resultados prováveis.

Terceiro, o outsider pode ser mais refratário à forma como governos operam numa democracia. Desacredita a negociação e a construção de consenso, reduzidas à mera troca de favores ou a práticas da velha ordem que prometeu evitar. Como nega os políticos, também tende a desvalorizar as instituições em que eles atuam. Mas, nas democracias, as leis são votadas e vetadas em parlamentos e o Judiciário supervisiona a sua execução. Sob certas condições, a tentação é de desacreditar aqueles a quem se opõe, em vez de construir maiorias legislativas. Não raramente, bloqueios legislativos ou judiciais têm levado outsiders a liderarem confrontos políticos, quanto não institucionais, com os parlamentos e judiciários. Ou reengenharia institucional, quando são politicamente fortes. Mudanças soft das regras, seja para insular ou centralizar decisões, buscam dificultar ou contornar a responsabilização dos membros do governo. Em casos mais extremo, mudanças institucionais podem ser mais atrativas. Nos anos 90, Alberto Fujimori fechou o Congresso e convocou uma constituinte. Mais tarde, o mesmo ocorreu na Venezuela, além de outros casos na América Latina.

Em setembro desse ano, um artigo anônimo publicado no NYT exemplificou tais riscos e tensões sob o governo de um outsider antissistema. Com maioria parlamentar e embalado por forte voluntarismo, Trump parece ser vítima do seu próprio outsiderism. Para evitar que a administração sucumba aos impulsos e à inexperiência de Trump na condução do governo, seus assessores deflagraram uma resistência anônima e invisível aos olhos do presidente, do Congresso e de seus eleitores. O motivo deles é o temor de que a plataforma republicana – “free minds, free markets and free people” - seja ameaçada pelo outsider eleito por eles. Sua autoridade está sendo definida pela resistência dos seus aliados, dentro do Executivo, em vez dos tradicionais mecanismos de controle político.

Por aqui, essas tensões e riscos estão em discussão diante de um possível governo de Bolsonaro. Sabemos que nas democracias os freios e contrapesos institucionais, partidos e burocracias fazem a diferença. Se disponíveis e quando há interessados em controlá-los, cabe ressalvar. Assim, alguns acreditam que as instituições políticas brasileiras farão do seu governo mais do mesmo. No máximo, um mesmo pior. Mas isso não descreve toda a estória.

Mas diferente de Trump, limitado por partido majoritário e resistentes invisíveis, um governo Bolsonaro sinaliza riscos maiores. De um voluntarismo errático, de protagonizar o próprio isolamento e maior “inaptidão” para fazer parte do jogo. Riscos que tornam divisões e resistências mais prováveis e mais graves na falta de habilidades ou competências políticas para antecipá-las ou superá-las. Macron, um outsider moderado, tem conseguido isso na França. Mas, no caso de um outsider antissistema, os riscos são maiores porque é eleito para fazer diferença, mas por meio de recursos e engrenagens que não domina e por meio de métodos que expõem a sua fragilidade. Os exemplos, nesse caso, apontam menos para a moderação e mais para mudanças das regras sob as quais o outsider prefere operar. Se eleito Bolsonaro, essa será a encruzilhada que o Brasil enfrentará a partir de 1º de janeiro.

Magna Inácio é professora da UFMG e Mariana Llanos é pesquisadora do German Institute of Global and Area Studies, na Alemanha.

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