_
_
_
_
_

Tempos de Bolsonaro

Uma análise profunda de alguns dos temas da atualidade internacional através de artigos publicados em meios de comunicação globais, selecionados e comentados pela revista ‘CTXT'

Jair Bolsonaro, o 11 de outubro de 2018.
Jair Bolsonaro, o 11 de outubro de 2018.MAURO PIMENTEL (AFP)
Mais informações
A euforia de investidores que normalizam o risco do extremista Bolsonaro
As elites que escolhem Bolsonaro colocam em risco as vidas de outros
Farda, família e mercado: os homens que compõem o círculo de poder de Bolsonaro

O terremoto ultradireitista de Jair Bolsonaro sacudiu os alicerces da democracia brasileira. Sua onda expansiva percorre a América Latina e é sentida também na Europa e nos Estados Unidos. Quem é Bolsonaro? Por que arrasou no primeiro turno das eleições brasileiras? Quem o apoia e quais interesses representa? Que consequências tem sua vitória nos âmbitos regional e global? São algumas das perguntas que pairam sobre a imprensa internacional desde que terminou a contagem dos votos do primeiro turno da disputa pela presidência.

O que transparece é um movimento político construído a partir das rejeições − às minorias, aos pobres, às mulheres, à esquerda, à democracia − e de um indisfarçado gosto pela violência. Mas, aprofundando um pouco, encontra-se um projeto com três fundamentos claros: a sintonia total com o mercado, a homenagem aos altares das Igrejas pentecostais e a inquietante conexão com certos setores obscuros das Forças Armadas.

A rede de notícias alemã Deutsche Welle traz em seu site em espanhol na Internet um autorretrato do vitorioso candidato da extrema direita em 15 frases ditas pelo próprio Bolsonaro. Ele aparece como abertamente misógino (“é muito feia, não é do meu gosto, jamais a estupraria. Não sou estuprador, mas se fosse, não a estupraria porque não merece”), apaixonado pela violência das ditaduras da direita latino-americana (“Pinochet deveria ter matado a mais gente”), flertando com o uso da violência como arma política (“o grande erro da ditadura foi torturar e não matar”) e contrário aos pobres (“defendo a pena de morte e o rígido controle de natalidade, porque vejo a violência e a miséria que cada vez se estende mais pelo nosso país. Quem não tem condições de ter filhos não deve tê-los”); além de resistente à própria ideia de democracia (“uma merda”) e convencido da necessidade de acabar com ela (“se eu fosse presidente, sem a menor dúvida fecharia o Congresso e daria um golpe no mesmo dia”).

Faixa contra Bolsonaro exibida durante manifestação na quarta-feira.
Faixa contra Bolsonaro exibida durante manifestação na quarta-feira.Andre Penner (AP)

Como pôde um homem assim chegar às portas do Palácio da Alvorada? Nas vésperas das eleições, o site norte-americano The Intercept levou seus leitores ao coração de um país dividido. Coincidindo com a saída do hospital do candidato ultradireitista, esfaqueado em um comício no início da campanha, o repórter Sam Cowie percorreu as ruas de uma São Paulo convulsionada por protestos do movimento feminista contra Bolsonaro e contra os partidários do candidato. Ali, o repórter britânico encontrou um eleitorado em frenesi depois de uma campanha estrambótica marcada não só pelo esfaqueamento de Bolsonaro por um desequilibrado mental, mas também pelo cancelamento do título eleitoral de mais de três milhões de pessoas e a polêmica inabilitação do grande favorito: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, a quem o ilustre linguista e dissidente Noam Chomsky visitou na prisão dias antes das eleições, para publicar também um relato no The Intercept.

Entre os partidários de Bolsonaro, contava Cowie, circulavam como pólvora as notícias falsas em grupos de WhatsApp, impulsionadas pela ânsia por soluções rápidas para a crise de delinquência de um dos países mais desiguais do planeta. Só assim se entende o apoio incondicional de líderes sindicais caminhoneiros e trabalhadores da construção, em outros tempos organizadores de greves em defesa de seus grupos: “Votarei nele por suas propostas sobre segurança”, contava um. “De que adianta ter trabalho se você não sabe se chegará vivo a ele?”. Bolsonaro prometeu “lutar com violência contra a violência” e seu discurso calou fundo em quem mais a sofre. Também colam − principalmente no cada vez mais poderoso, organizado e radicalizado eleitorado evangélico radiografado pelo jornal argentino Página 12 − os rumores sobre políticas “de gênero” supostamente defendidas pelo partido de Lula, cuja sucessora, Dilma Rousseff, foi destituída por um julgamento parlamentar com forte cheiro de golpe “‘brando”. Entre os partidários de Bolsonaro, muitos acreditam que o candidato do PT está disposto a distribuir mamadeiras com forma de pênis para combater a homofobia ou a financiar “operações sexuais” em crianças de três anos. Nesse substrato cresceu o candidato radical, estimulado por uma legião de sabujos paramilitares aparentemente dispostos a impor seu programa a todo custo, abordados pelo jornalista David Noriega para o noticiário Vice no canal HBO.

Jair Bolsonaro
Jair BolsonaroMarcelo Sayão (EFE)

O que está subjacente à esmagadora vitória de Bolsonaro é, segundo Pablo Stefanoni, algo muito mais profundo e com lições que ultrapassam as fronteiras do Brasil: a rejeição frontal à “luta de classes branda” defendida pelo PT. O editor da revista Nueva Sociedad fala de um fantasma que percorre a América Latina, que ele chama de “antiprogressismo”. No Brasil, essa corrente se manifesta em forma de censura ao PT, que “melhorou a situação dos que estão nas camadas mais baixas sem remover os que estão em cima” e acabou sendo devorado pelas elites com as quais quis se acomodar. Entre quem votou em Bolsonaro, portanto, havia muito de antipetismo. Precisamente por isso se estruturou em forma de revolta contra os avanços obtidos por Lula e Rousseff, com aríetes como “o racismo diante de uma visão radicalizada da pobreza” e o conservadorismo “diante dos avanços do feminismo e das minorias sexuais” de um movimento antiprogressista cada vez mais virulento e ascendente da Costa Rica até o Chile, que se cristalizou primeiro no Brasil. O dia 7 de outubro foi, portanto, o primeiro turno de uma contrarrevolução.

Talvez isso explique o interesse que os banqueiros de dentro e fora do Brasil − os mesmos que saudaram com satisfação o turvo uso do instrumento constitucional do impeachment contra Dilma e a polêmica condenação e inabilitação de Lula − têm por Bolsonaro. O Financial Times descreve o entusiasmo que despertou nas elites financeiras brasileiras a possibilidade de um Governo de Bolsonaro − que, acreditam elas, “adotará um programa econômico de liberalização” e colocará fim a “décadas de políticas estatistas”. O jornal britânico se detém na figura de Paulo Guedes, o banqueiro de investimento formado na Escola de Chicago que assessora Bolsonaro em assuntos econômicos e que já está procurando outros “financistas de altos voos” para integrar a equipe de transição se o candidato derrotar no segundo turno Fernando Haddad, ungido por Lula como “plano B” do PT. “Há uma sensação de entusiasmo contido”, diz o “alto executivo de um banco” ao jornal londrino. “Talvez Bolsonaro não seja o catalisador da mudança que eu teria escolhido, mas é aquele que a democracia brasileira proporcionou. Muitos de meus colegas se perguntam como podem ajudar.”

Marcha contra de Bolsonaro, no dia 11 de outubro de 2018.
Marcha contra de Bolsonaro, no dia 11 de outubro de 2018.REUTERS

O capitão Bolsonaro tem, portanto, muito de seu admirado Pinochet, e chegaria ao poder bem flanqueado por seus militares da reserva e seus Chicago Boys. E, diante da perspectiva de voltar a um governo de centro-esquerda gradualista, a oligarquia brasileira apostou forte na ultradireita.

O coração das finanças globais tampouco dissimula seu apoio ao candidato do Partido Social Liberal. Em um editorial triunfalista publicado na manhã seguinte de sua retumbante vitória, o Wall Street Journal celebrava o resultado eleitoral: “Os progressistas globais estão sofrendo um ataque de ansiedade devido à vitória quase absoluta de domingo do candidato conservador à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro”, assinalava o jornal nova-iorquino. “Depois de anos de corrupção e recessão, parece que milhões de brasileiros acreditam que um outsider seja exatamente aquele de quem o país necessita. Talvez saibam mais sobre o assunto do que os resmungões do mundo”. A versão de Wall Street do “ladram, Sancho...” de Cervantes.

A extrema direita cresce até onde menos se espera. O Financial Times se concentrou, dois dias antes das eleições brasileiras, em uma expressão particularmente surpreendente do fenômeno: a dos judeus que aderem com cada vez mais frequência ao partido ultradireitista alemão Alternative für Deutschland. É difícil vislumbrar uma aliança mais contrária à natureza, pelo menos superficialmente. Mas o correspondente do jornal na Alemanha, Guy Chazan, assinala que o ódio ao islã e a defesa de Israel servem de sutura suficiente para que essa aliança não se debilite por suas contradições. O inimigo do meu inimigo é meu amigo.

O ‘efeito sutura’ de Brett Kavanaugh

O “efeito sutura” funcionou também no processo de confirmação do juiz da Suprema Corte dos EUA Brett Kavanaugh, acusado de abusos sexuais por três mulheres. Os republicanos mal podiam perder um voto entre seus 51 senadores para alçar Kavanaugh à Suprema Corte de forma vitalícia e mudar o equilíbrio de poder de uma das instituições mais importantes do país, que terá maioria conservadora durante décadas. Diante de tamanha empreitada, os líderes republicanos e Trump, que tantas vezes entraram em confronto e foram incapazes de se entender, “partiram juntos para a trincheira”, como conta o redator-chefe em Washington do Wall Street Journal, Gerald Seib. Ele assinala que “não é nenhuma coincidência que tenham feito isso em busca do único objetivo com o qual sempre estiveram de acordo: encher a Suprema Corte de juízes conservadores”. Kavanaugh foi indicado a Trump pela ala mais conservadora do partido. Embora relutasse, o presidente acabou concordando − e viu como o político mais implacável e ardiloso da direita norte-americana, Mitch McConnell, sustentava sua nomeação contra tudo e contra todos.

Manifestantes contra a nomeação do juiz Kavanaugh protestam diante da Suprema Corte dos EUA.
Manifestantes contra a nomeação do juiz Kavanaugh protestam diante da Suprema Corte dos EUA.CHIP SOMODEVILLA (AFP)

De nada serviram as históricas mobilizações do movimento feminista que tomou Washington nas semanas prévias à sessão plenária de confirmação do juiz. Nem as inconsistências no testemunho inflamado e desbocado que o juiz proferiu ante a Comissão de Justiça do Senado depois do comparecimento de uma das mulheres que o acusaram, a psicóloga Christine Blasey Ford. Em uma monumental análise forense, o diretor da revista Current Affairs, Nathan Robinson, examina os testemunhos e acusa Kavanaugh de mentir até não poder mais ante o Senado, o que seria um delito de perjúrio.

Mas Kavanaugh, um juiz acusado de assédio por pelo menos 3 mulheres e nomeado por um presidente acusado de assédio por 20 mulheres, já está na Suprema Corte. Ali poderá ficar durante três ou quatro décadas, até que morra ou se canse, para decidir sobre temas como a questão de se as mulheres têm direito a abortar depois de ser estupradas. Direito que o próprio Kavanaugh negou a uma refugiada de 17 anos quando era juiz de uma instância inferior.

A pomposa nomeação de Kavanaugh, que ocorre um ano depois da reportagem do New York Times que inaugurou o movimento #MeToo, não poderia ser mais emblemática da existência do patriarcado para Mehdi Hassan, apresentador do podcast Deconstructed. O programa dedica um episódio fundamental a explicar a natureza sui generis da Suprema Corte dos EUA e as linhas de batalha política que se desenham depois da confirmação de Kavanaugh. Hassan, aliás, publicou dias atrás um maravilhoso ensaio em vídeo, intitulado A Short History of U.S. Meddling in Foreign Elections (“breve história das intromissões dos EUA em eleições estrangeiras”). Não deixe de vê-lo.

Brett Kavanaugh e o presidente dos EUA, Donald Trump, durante a cerimônia em que foi nomeado juiz da Suprema Corte, no dia 8.
Brett Kavanaugh e o presidente dos EUA, Donald Trump, durante a cerimônia em que foi nomeado juiz da Suprema Corte, no dia 8.JIM WATSON (AFP)

Para o crítico Hamid Dabashi, professor iraniano da Universidade de Columbia, a declaração da mulher que acusou Kavanaugh − e a reação daquele que acabou se tornando juiz do tribunal de última instância do país − expôs como a supremacia de classe do dinheiro e do poder dos brancos recorre à raiva e à fúria vingativa para silenciar e desdenhar de qualquer um que se atreva a pôr em dúvida seus privilégios institucionais”. Em um artigo publicado no site da TV Al-Jazeera, Dabashi disseca a imagem de uma mulher prestando depoimento com precisão clínica diante de 11 senadores brancos e a de um homem insolente que nega tudo, “como o garoto de 17 anos na manhã seguinte à bebedeira”. Isso, assinala Dabashi, é a essência da questão: “A masculinidade branca estrutural no coração da política da direita norte-americana”, que circula dos neonazistas da marcha de Charlottesville até “o espetáculo do privilégio branco e masculino unido ante uma mulher vulnerável”, como “dois polos que conectam o mesmo espectro de poder masculino”.

A questão da responsabilidade em casos de abuso sexual é abordada pela ensaísta Lauren Oyer em seu artigo para a revista dominical do New York Times. “Quem ou o que tem a culpa pelo assédio sexual? É o indivíduo que o comete? Ou são as condições ambientais que fazem com que esse indivíduo acredite que pode atuar impunemente?” Oyer examina a partir de sua raiz etimológica o conceito da toxicidade, em particular a toxicidade masculina, que, diz a ensaísta, “é invocada como causa principal de tudo, do assédio sexual à violência contra as mulheres, passando pela popularidade de David Foster Wallace”.

O conceito é enganoso e tende a errar o alvo, sustenta Oyer, que recorre a exemplos sugestivos, como a crise financeira: “Em vez de esclarecer a causa de um caso obscuro, o tóxico geralmente faz o contrário. O epíteto concentra a crítica estrutural no sintoma, não na causa, sugerindo que um pouco de limpeza será suficiente para resolver o problema”. Se você quer mais do que se sentir satisfeito com sua pureza, aponte para a causa, não para os sintomas, afirma Oyer. Algo parecido ocorre com o fascismo.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_