Mulheres trans na política: elas cansaram de ser silenciadas
As trans têm pautas como educação, saúde e emprego, mas querem mais: o fim do genocídio da população trans e representatividade. Conheça quatro das 52 candidaturas trans nas eleições deste ano
Hoje, a expectativa de vida de uma pessoa trans e travesti é de 35 anos. Só neste ano, o número de assassinatos em decorrência da transfobia (ódio ou aversão à identidade de gênero) já chegou a 123, sendo 65 assassinatos de travestis e 53 de mulheres transexuais, de acordo com relatório do Grupo Gay Bahia. É nesse cenário que o Brasil chega às eleições com um número recorde de pessoas trans em busca de um cargo no Legislativo: 52 candidaturas.
Em março de 2018, o STF (Supremo Tribunal Federal) permitiu que pessoas trans alterassem o nome social nos documentos sem a necessidade de cirurgia. Impulsionado pela decisão da Suprema Corte, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) determinou que o gênero das pessoas trans, durante a inscrição, respeitasse a identidade de gênero de cada um, além de incluir mulheres trans e travestis na cota de mulheres.
A Ponte conversou com quatro candidatas que têm muito em comum: são mulheres transexuais ou travestis, têm mais de 35 anos, vieram da área da educação e são ativistas LGBT. Para elas, a motivação maior para tantas candidaturas é a necessidade de representatividade trans em cargos historicamente negados a essa população.
“Eu não vou recuar”
Pela primeira vez, uma travesti está concorrendo a um cargo no Senado: Duda Salabert (PSOL-MG), 36 anos, decidiu tentar seu primeiro cargo político para lutar pela educação. Professora há 18 anos, Duda garante que, caso eleita, lutará por uma educação pública, gratuita, de qualidade e que acolha pessoas LGBTs, sobretudo pessoas trans.
“No Senado, eu vou carregar como carro-chefe a luta para revogar a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os investimentos na educação. Não tem como a gente pensar em uma educação de qualidade com essa emenda. Defendo também perdão da dívida do FIES [Fundo de Financiamento Estudantil], já que educação é um direito constitucional. Então, enquanto o Estado não garante esse direito, cabe a ele perdoar os estudantes desempregados que não têm condições de pagar essa dívida. Se o Estado já perdoou grandes banqueiros e empresários, esse perdão da dívida estudantil, além de ser uma postura ética, não vai fazer muita diferença nos cofres públicos”, pondera Salabert.
Para ela, ser a primeira candidata trans ao Senado é um misto de alegria e de tristeza. “Eu me sinto muito feliz, porque é uma vitória do movimento travesti e transexual, mas, ao mesmo tempo, me sinto muito triste porque é uma derrota da democracia. Se eu sou hoje a primeira travesti a se candidatar ao Senado, eu questiono: onde estavam esses corpos transexuais na história do país e da América Latina? O fato de eu ser a primeira carrega em si uma derrota da democracia na América Latina, pois mostra que nunca se teve democracia plena, já que alguns corpos foram apagados e rasurados da esfera pública”, desabafa Duda.
Duda enxerga que uma das demandas prioritárias para a população trans é a inclusão do transfeminicídio (assassinato de mulheres trans e travestis) na Lei do Feminicídio. Além disso, ela defende demandas ambientais e de defesa dos animais. “Sou protetora dos animais e defendo a criação de hospitais públicos e farmácias populares para tutores de baixa renda. Também carrego a pauta da alimentação, com a redução de impostos sobre frutas, legumes, verduras e produtos orgânicos, com maior investimento na agricultura familiar e na agroecologia. Sem contar com a bandeira da reforma agrária popular e a reforma urbana”, explica.
Questionada sobre a motivação da sua candidatura, Duda é enfática: representatividade. A professora mineira acredita que chegou a hora de construir políticas e visões que fujam do tradicional, permitindo que pessoas trans ocupem o espaço político institucional e possam debater não só sobre gênero, mas sobre economia, saúde e meio ambiente. Salabert também conta que a política ainda é um espaço que reproduz muito a transfobia, o que dificulta o dia a dia de uma candidata trans.
“Os partidos são espelho da sociedade, então são ainda muito machistas, misóginos e transfóbicos. Eu sei que em um momento de tanto ódio, estar na linha de frente é muito desgastante, tenho sofrido vários atentados virtuais, muitos deles tiveram como pessoas motivadores políticos da família Bolsonaro. Mês passado, por exemplo, alguns dos Bolsonaro fizeram publicações contra a minha figura, o que desencadeou em literalmente milhares de mensagens de ódio contra mim”. Duda conta que algumas pessoas chegaram a ligar para a escola onde ela trabalha e exigir que a demitissem. “Eu sei o preço que eu tô pagando por essa candidatura, com risco de ser demitida, mas é necessário e estar na frente e carregar essa bandeira. Eu não vou recuar”, defende Duda.
“Eu quero lutar pelo Estado Laico”
A professora Alexya Salvador (Psol-SP), 37 anos, é pastora auxiliar na Igreja Comunidade Metropolitana, que tem vertente protestante, e vice-presidente da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas). A sua maior bandeira, caso seja eleita deputada estadual, é lutar pelo fim da bancada religiosa na Assembleia de São Paulo.
“Eu quero lutar pelo Estado Laico. Como pastora de uma igreja protestante inclusiva, quero lutar para que nesses espaços de poder, que nesses espaços de decisão, a laicidade seja realmente exercida e que a religião não oriente o Estado. Dai a César o que é de Cezar e a Deus o que é de Deus. Então a gente está lá para representar os interesses do povo, não as individualidades que cada deputado e deputada traz consigo”, defende Salvador.
Para Alexya, a empregabilidade trans deve ser foco das candidaturas T. Ela promete impulsionar a criação de leis que sensibilizem empresas e organizações para contratação de pessoas trans. Para a professora, a busca por mais empregos deve estar aliada a redução da evasão escolar, muito comum na população trans. Alexya lembra que a mudança de mentalidade só virá com educação.
“Estamos em um momento da história em que é necessário educar a sociedade, educar o olhar das pessoas, por que as pessoas precisam começar a conviver com pessoas trans. Uma vez que se vive com essas pessoas no âmbito do trabalho, da sociedade, as pessoas vão desmitificando quem nós somos. A empregabilidade ainda é um divisor de águas, porque se essa pessoa tem acesso ao emprego, ela não precisa mais estar no universo da prostituição. O acesso à escolaridade também é muito importante, muitas pessoas trans abandonam a escola no Ensino Fundamental e Médio e sabemos que pouco mais de 3% chegam às universidades, então temos que pensar em cotas nas universidades para que homens e mulheres trans alcancem plena cidadania”, defende Alexya.
A pastora conta que a motivação maior para sua candidatura está no futuro da sua filha mais nova, que também é transexual. Alexya é mãe adotiva de duas crianças: Gabriel, que tem 13 anos e é portador de necessidades especiais, e Ana Maria, 11 anos. “O que me motiva a estar candidata é lutar para que a minha filha, quando estiver com a minha idade, possa viver em uma cidade mais humana, mais respeitosa, em que pessoas trans não sejam assassinadas como vemos todos os dias. Estar candidata no país que mais mata travestis e transexuais no mundo é o maior ato político que eu poderia exercer”, desabafa.
Mulheres, transexuais e negras: sementes de Marielle
Apesar de saberem a importância de suas lutas enquanto ativistas trans, duas candidatas à deputada estadual, uma no Rio e outra em SP, decidiram ultrapassar as barreiras da militância e tentar entrar para a política institucional. As semelhanças entre as duas são grandes: elas são mulheres, transexuais, negras, com nomes bem reconhecidos no movimento trans e tem como inspiração a vereadora Marielle Franco, assassinada há quase 7 meses, um crime ainda sem resposta.
Jaqueline Gomes de Jesus (PT-RJ), 40 anos, é uma das mais influentes referências trans no âmbito acadêmico. A professora do IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro), que também é psicóloga e escritora, acredita que a visibilidade que o movimento trans alcançou nos últimos anos, somado com o desejo de mudança, impulsionou as candidaturas trans. Para ela, ocupar lugares no Legislativo é uma conquista, apesar das lacunas, como, por exemplo, a falta de apoio de determinadas legendas, principalmente motivadas pelo preconceito.
“A sociedade que a gente vive hoje é uma sociedade transfóbica e isso implica em lugares de privilégios. São lugares que pessoas trans não são esperadas. Não é só uma falta de conhecimento ou de experiência das próprias candidaturas trans, mas também é transfobia. As estruturas partidárias ainda têm que aprender a conviver com pessoas trans. Ocupar esses espaços é mexer com essas estruturas, para que elas percebam a nossa existência. Esse momento é fruto do movimento trans. Eu represento como indivíduo um momento dessa história. Nós avançamos e entendemos, cada vez mais, que o espaço político também é nosso espaço”, explica Jaqueline.
As bandeiras defendidas por Jaqueline em sua campanha ultrapassam as pautas trans. Para ela, é preciso pensar, antes de tudo, nos sérios problemas enfrentados pelo Rio de Janeiro e as intersecções entre raça, classe e gênero. O acesso à educação, à saúde e à empregabilidade para a população trans e para pessoas negras e periféricas será seu foco central.
“Eu defendo uma educação pública e gratuita de qualidade; uma saúde pública e gratuita de qualidade, pensando na descentralização de serviços para que mais mulheres tenham acesso à saúde, que mulheres lésbicas e bissexuais tenham um protocolo de saúde adequado às suas realidades, para que pessoas trans tenham acesso de saúde facilitado, porque hoje ele é muito dificultado por ter apenas dois centros no município que atende a população”, conta Jesus.
Em 2017, Jaqueline recebeu de Marielle Franco, na Câmara de Vereadores do Rio, a medalha Chiquinha Gonzaga, comenda oferecida a mulheres reconhecidas pelas contribuições sociais, culturais a sociedade brasileira. Juntas, a professora e a vereadora participaram de diversos eventos políticos. Por isso, Jaqueline garante que as lutas de Marielle seguirão vivas em seu mandato, caso seja eleita.
“As lutas de Marielle sempre tiverem reflexo nas minhas. Falar das lutas de Marielle e das minhas lutas é falar daquelas lutas que se encontram, das mulheres que se encontram na sua diversidade, nos seus laços em comum, nas suas diferenças. Então nós sempre estivemos juntas, Marielle sempre foi muito empoderadora na minha caminhada política, mesmo eu não estando ao mesmo partido que ela. Ela sempre considerou que tínhamos que estar juntas nas lutas políticas porque ela tinha esse olhar da valorização das nossas pautas políticas e dos nossos encontros enquanto mulheres negras, periféricas e LBTs [lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis], então não tem como não ter reflexo porque nós temos essa missão de levar adiante as pautas de Marielle”, relembra Jesus.
“É sobre muitas Marielles que foram apagadas”
A candidata de São Paulo é a educadora e artista Erica Malunguinho (PSOL-SP), 36 anos, que também é idealizadora do Aparelha Luzia, espaço cultural de luta e resistência negra e LGBT, conhecido como quilombo urbano. A história do país e a luta pela vida da população negra, periférica e LGBT foram os impulsionadores para que Erica se candidatasse como deputada estadual: para ter espaço nesses locais de tomada de decisão.
“A gente se entende como um corpo que é colocado em dissidência em relação as estruturas de poder e não só pensar no meu corpo como individual, mas no corpo coletivo que está sempre em dissidência. Nosso maior enfrentamento, nosso maior posicionamento é pela vida. Nós somos uma candidatura e um mandato que preza e valoriza e que vai se movimentar pela vida. Pensar em uma proposta de garantia de vida é pensar, sim, sobre defesa do povo preto, periférico, LGBT, garantia de vida para população indígena, proteção de territórios indígenas e quilombolas, pensar no acesso a formação, renda e trabalho desses mesmos povos, pensar essas populações, pensar em saúde, na violência contra as mulheres cis e trans, pensar na política de drogas, que também é uma política de extermínio do povo pobre e preto”, defende Malunguinho.
O fundamento racial é a pauta prioritária de Erica. Para ela, é muito importante pensar que raça não é recorte, é fundamento, pois o processo de formação do povo brasileiro se dá na diferenciação de pessoas brancas e não brancas e, assim, surge a lógica de opressão. “A luta pelas mulheres negras nunca foi uma luta para si, é uma luta pelo bem comum, uma luta para emancipação coletiva. Afinal de contas, nós, que somos a base da pirâmide, entendemos que nunca será possível a emancipação e a transformação se não estiver adequado para todas as pessoas. Uma vez que essa base se movimenta, a estrutura se movimenta toda junta”, pondera a educadora.
Malunguinho reforça que a luta pela vida deve permear todas as lutas, sobretudo pensando naqueles que já se foram. “Eu acredito que todos os assassinatos, todas as mortes que acontecerem no decorrer dessa história, impulsionaram o nosso lugar agora de escolha de entrar na institucionalidade. É sobre Marielle, é sobre Claudia Ferreira, é sobre Luana Barbosa, é sobre Dandara, é sobre Marcus Vinícius, é sobre Matheusa. É sobre muitas mortes, sobre muitos corpos apagados por conta de existirem, ou de travarem contra o poder estabelecido o seu posicionamento em prol das ditas minorias”, afirma Erica. “É sobre muitas Marielles que foram apagadas. Quando a gente fala que a nossa campanha e candidatura é sobre a vida, é exatamente isso que estamos falando: não ficaremos de braços cruzados. Ficaremos cada vez mais afrontosas, posicionadas, assertivas e ocupando cada vez mais lugares enquanto as nossas cabeças forem colocadas a sorte de qualquer governo, de qualquer lógica de poder”, finaliza.
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