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Coluna
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Elogio do pessimismo?

Histórias de generosidade e desinteresse são vividas a cada momento no planeta. É essa solidariedade anônima que permite ao mundo, apesar de tudo, continuar de pé e até melhorar.

Juan Arias
 Brasileiro distribui pães a refugiados venezuelanos.
Brasileiro distribui pães a refugiados venezuelanos.Douglas Magno

Esta coluna não pretende ser um elogio ao pessimismo, em um momento em que o país precisa urgentemente de uma dose de esperança. Sempre acreditei que nosso mundo, com todos os seus defeitos, é melhor que o passado. Hoje, porém, começo a entender que uma dose de pessimismo consciente e racional pode nos ajudar a entender melhor o que estamos vivendo no Brasil e fora dele, a começar pela minha Espanha.

Sempre se disse que o mundo está dividido entre aqueles que, diante de um copo de água pela metade, dizem que está “meio cheio” e outros “meio vazio”. Eu me pergunto hoje, depois de ter passado por tantas experiências na vida e conhecido pessoas de tantas visões diferentes, se o mundo é construído mais com a argamassa de puro otimismo ou também com uma dose de desconfiança e objetividade diante da realidade.

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Acabei de ter uma experiência singular a esse respeito. Exatamente dez anos atrás, estava de passagem por Madri para lançar meu livro Proyecto Esperanza. Aproveitei para passar pela agência do banco BBVA na rua Santa Engracia para resolver um problema na minha conta. Tinham mudado o gerente. O novo, Francisco Javier Terciado, recebeu-me com gentileza. Quando leu o título do meu livro que tinha nas mãos, me disse: “Sou pessimista por natureza”. Nunca nos vimos de novo. Nossos contatos eram sempre por e-mail. Nunca soube nada sobre sua vida e nem ele da minha. Um dia foi transferido de agência e nos perdemos de vista. De Javier, o pessimista, me ficou a lembrança de um magnífico profissional, atencioso, delicado, sempre disponível e eficaz. Um exemplo de um funcionário.

Na semana passada, precisei resolver um pequeno problema naquele banco. A gerente da minha agência devia estar de férias e eu não conseguia me comunicar com ela. De repente, lembrei-me de Javier, o pessimista. Procurei o e-mail dele nas minhas velhas agendas. Tentei para ver se ainda era válido e se ainda trabalhava no banco, se ainda se lembrava de mim e se poderia dar-me uma mão, mesmo que minha pequena conta seja uma insignificância para um banco.

No dia seguinte, recebi um e-mail dizendo que Francisco Javier Terciado “estava de férias e só voltaria no final do mês”. Dois dias depois ele respondeu, no entanto, pessoalmente, para me dizer que, de fato estava de férias, mas que voltaria no final do mês e tentaria me ajudar. Fiquei surpreso que, durante as férias, ele teve a delicadeza de me responder. E fiquei ainda mais surpreso quando, nesta manhã bem cedo, ele me escreveu novamente para dizer que acabara de chegar ao seu escritório e que já tinha resolvido o meu problema.

Fiquei pensando o que um funcionário do banco deve encontrar de assuntos importantes acumulados em sua mesa de trabalho ao voltar de férias. Mesmo assim, ele não esqueceu o meu pequeno problema e o resolveu, como quando eu o conheci há dez anos, com rapidez e profissionalismo. Escrevi para agradecê-lo e demonstrar a minha surpresa por ele ter se interessado por um simples e distante cliente do banco. Ele respondeu: “O senhor não tem que me agradecer. Eu gosto, quando posso, de ajudar as pessoas”.

A pequena história de Francisco Javier, o pessimista por natureza, que se preocupou em resolver o meu problema sem que eu fosse seu cliente, me fez repensar quantas histórias como essa de generosidade e desinteresse estarão sendo vividas a cada momento no mundo, sem que nunca apareçam nos jornais. É essa solidariedade anônima que permite ao mundo, apesar de tudo, continuar de pé e até melhorar. Essas pessoas que trabalham no anonimato são os pilares que sustentam a sociedade, muito mais do que aqueles que aparecem todos os dias cacarejando suas promessas vazias, mas são incapazes de fazer essa receita tão simples e tão frutífera de Javier, o pessimista: “Eu gosto, quando posso, de ajudar as pessoas.”

Ontem à noite fui dormir depois de ter escutado a magnífica entrevista que Carla Jiménez fez para este jornal com Renato Meirelles, pesquisador e presidente do Instituto Locomotiva, especialista em opinião pública. Nela revelou que o que hoje une a maioria numérica dos brasileiros não é o ódio, que é minoritário, mas a solidariedade, sobretudo, explicou, porque os pobres são maioria no país e eles, que sabem o que é enfrentar dificuldades, são os mais sensíveis às necessidades dos outros.

Eu me pergunto se aqueles milhões de pobres solidários, que sempre carecem de algo que lhes seria devido, podem ser otimistas diante da vida. Certamente não. E, no entanto, seu pessimismo não os impede de ajudar, quando podem e até quando não podem, àqueles que lhes pedem ajuda.

São eles que, diante das nuvens escuras que, por exemplo, pairam sobre as eleições do Brasil, saberão intuir melhor seu compromisso para que as urnas castiguem os devotos do ódio e descubram, para governá-los, alguém capaz de unir em um abraço uma sociedade hoje dilacerada, mas em busca de concórdia.

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