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Coluna
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Agora sem Franco, que o Vale dos Caídos se torne um lugar de ressurreição

A Espanha decidiu retirar os restos mortais do ditador daquele monumento, onde ficarão apenas as vítimas dos dois lados da guerra civil, todos irmãos

Juan Arias
Vista geral do monumento Vale dos Caídos, de onde serão retirados os restos mortais do ditador Francisco Franco
Vista geral do monumento Vale dos Caídos, de onde serão retirados os restos mortais do ditador Francisco Franco J.J.Guillen (EFE)
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Não deve bastar remover do monumento funerário do Vale dos Caídos os restos mortais do ditador Franco, como felizmente decidiu o Governo socialista da Espanha. Agora é preciso fazer daquele lugar carregado de simbolismo da morte, de crucifixos gigantescos, de tanta dor e tanto sangue acumulados, um lugar de ressurreição.

Nunca me agradou aquele mausoléu gigantesco erguido para um ditador insignificante em tudo, menos na crueldade, nos expurgos políticos, nas torturas e na sede de poder. O Vale dos Caídos sempre me aterrorizou. Lembrava-me a Igreja pré-conciliar, aquela que abençoava ditadores como o Caudilho, quase canonizando os totalitarismos, enquanto se esquecia de abençoar os que lutaram e morreram pela liberdade.

Agora permanecerão no monumento apenas os restos mortais das vítimas dos dois lados, todos irmãos, que se viram envolvidos em uma guerra incivil com mais de um milhão de mortos, que os jovens de hoje não entendem nem querem para si. Que esse mausoléu se torne o símbolo vivo de um povo ressuscitado e unido contra todas as barbaridades do passado.

Não é verdade que todas as igrejas e cemitérios da História eram lugares tristes e lúgubres. As pequenas e silenciosas igrejas romanas dos primórdios do cristianismo, por exemplo, respiram mais ressurreição do que morte. Os primeiros cristãos, escondidos nas catacumbas de Roma, não gostavam da imagem do crucificado. Jesus era retratado naquelas paredes úmidas como os símbolos do Bom Pastor ou da Última Ceia, com os apóstolos comendo e bebendo a seu lado. O cristianismo primitivo, que a Espanha franquista parecia ignorar, estava encravado na alegria da ressurreição, símbolo da vida, mais do que na crucificação que evocava o tipo de morte infligida pelos romanos aos criminosos.

Façamos, pois, do Vale dos Caídos, liberto dos restos do ditador que optou pela violência e não pela paz, um lugar onde, hoje, pequenos e grandes podem se encontrar para celebrar a vida e a liberdade. Lembro-me de que, em 1964, quando Franco ainda era vivo, as ruas de Madri ostentavam cartazes que comemoravam “25 anos de paz”. Foram, no entanto, 25 anos da vitória da guerra civil. Eu estava em Madri, voltando da Itália. Convidaram-me para entregar o prêmio de melhor toureiro do ano a Viti concedido por La Peña El 7. Durante o jantar de gala, comentei sobre os cartazes. Falei que era preciso saber se eles tinham sido “25 anos de paz e não de ordem”.

Na saída, esperavam-me dois policiais. Queriam saber a que me referi quando disse aquilo. Tentei explicar que “enquanto a ordem se impõe com a força, a paz deve ser conquistada em liberdade”. Acrescentei, torcendo para que colasse, que era uma frase de Aristóteles. Não entenderam, mas o filósofo grego deve tê-los tranquilizado. Naqueles tempos de censura, tínhamos de aguçar o cérebro para dizer sem dizer e até mentir para defender a verdade.

Hoje, a Espanha vive anos de liberdade, onde ninguém impõe ordens fascistas. Seus jovens líderes são filhos da paz conquistada com a chegada da democracia. É a Espanha da ressurreição, a de todos. Que o Vale dos Caídos, liberto da presença do ditador, reflita, a partir de agora, a Espanha rica de ideias e culturas diferentes que se expressam em liberdade, sem nostalgias autoritárias, como as que eram impostas com o fuzil na boca.

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