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A batalha científica para que um quilo seja sempre um quilo

O Nobel de Física William Phillips defende as mudanças iminentes no Sistema Internacional de Unidades

William Phillips mostra uma réplica do Protótipo Internacional do Quilograma durante a conferência de física atômica em Barcelona.
William Phillips mostra uma réplica do Protótipo Internacional do Quilograma durante a conferência de física atômica em Barcelona.Albert Garcia (EL PAÍS)

"É um escândalo", diz William Phillips, Prêmio Nobel de Física em 1997, "que a unidade de massa ainda seja um objeto físico". Com luvas de pano, Phillips mostra um peso metálico aos participantes da 26a Conferência Internacional de Física Atômica, em Barcelona. É uma réplica do Protótipo Internacional do Quilograma (IPK, na sigla em inglês), o cilindro de platina-irídio guardado a sete chaves em um porão de Paris, que define a unidade de massa do Sistema Internacional desde o século XIX. "Se eu sujar isso com minhas mãos, automaticamente todos vocês pesarão menos", explica diante das risadas do público. "Isso precisa ser consertado", acrescenta em tom sério.

Os metrólogos, que estudam a medição de magnitudes, propuseram redefinir as unidades de medida de massa (quilograma), da corrente elétrica (amperes), a quantidade de substância (mol) e de temperatura (kelvin) com base no valor fixo de constantes da natureza, de maneira que não possam variar mais. Na conferência, realizada semana passada no Palau Congressos de Barcelona, Phillips e o físico brasileiro Vanderlei Bagnato explicaram como chegaram às novas definições, que devem entrar em vigor em 20 de maio de 2019, no aniversário da Convenção do Metro de 1875.

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Quando o IPK foi criado, com a ideia de homologar o peso de um litro de água líquida, foram também criadas cópias de referência internacionais, em teoria, idênticas. No entanto, ao tentar calibrar novos pesos, observou-se que as massas dos diferentes padrões do quilo, incluindo o original, variavam entre si em valores de pelo menos 50 microgramas (milionésimos de grama). O material pode absorver átomos do ambiente e perdê-los com a limpeza. Na ciência, esta discrepância é "intolerável", diz Phillips, especialmente pelo fato de que o quilograma é utilizado para definir outras três unidades básicas do Sistema Internacional —a candela, o ampere e o mol— e 17 unidades derivadas, tais como o joule e o newton.

A missão de "democratizar" o quilo

Phillips trabalha no Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST, na sigla em inglês), sediado nos Estados Unidos, um dos centros de metrologia que participa da revisão do Sistema Internacional de Unidades. A missão do NIST era encontrar uma nova definição do quilo que não fosse apenas invariável, mas também "democrática", ou seja, que estivesse ao alcance de qualquer laboratório que quisesse calibrar um padrão. "Hoje, a única maneira de saber o autêntico valor do quilo é ir ao Escritório Internacional de Pesos e Medidas, na França, que apenas retirou o IPK de sua capa protetora algumas vezes em dois séculos", protesta.

William Phillips, antes da entrevista em Barcelona.
William Phillips, antes da entrevista em Barcelona.Albert Garcia (EL PAÍS)

A inspiração veio finalmente do metro, outra unidade básica que, em 1983, deixou de ser legalmente "o comprimento de uma barra de platina em Paris" para ser "a distância percorrida pela luz em 1/299.792.458 segundos". Esta forma de fixar as unidades não é intuitiva, já que primeiro requer definir o valor exato de uma constante da natureza, à qual se impõe um valor numérico arbitrário com base nas características do objeto físico do qual a ciência quer se desfazer. Com o metro, os cientistas adotaram o protótipo homologado —a barra de platina— para estudar sua relação com uma constante natural: a velocidade da luz no vácuo. Sabendo exatamente que fração de um segundo a luz leva para percorrer o comprimento da barra, estabeleceram oficialmente a velocidade da luz em 299.792.458 metros por segundo.

"Uma constante que tem unidades não é natural", Phillips explica ao EL PAÍS após a conferência. "O que é natural na velocidade da luz é ser a mesma para todos os observadores e para todo o espectro de luz, mas seu valor numérico depende do que tenhamos decidido ser um metro e um segundo", diz. O importante é que, agora que o valor da velocidade da luz está "decidido", a definição do metro nunca mais dependerá do comprimento de um objeto físico; qualquer laboratório com um relógio atômico pode medir a distância que os fótons percorrem nessa fração de tempo e, assim, saberá o comprimento exato da barra de platina no momento em que a definição do metro foi fixada. Mesmo se o objeto for perdido ou deformado, o metro já é atemporal.

Para imortalizar o quilo, também é necessário definir o valor numérico de uma constante natural. Os químicos escolheram o número de Avogadro —que relaciona a quantidade de átomos ou moléculas com a massa de uma amostra— e os físicos, a constante de Planck —que relaciona a energia de um fóton com a frequência de sua onda—. Mais do que competir, os dois métodos são complementares, já que o consenso tem sido alcançar um nível de precisão que permita usar números fixos de ambas as constantes para obter o mesmo valor numérico do quilo. Além disso, a constante de Avogadro, que foi definida medindo a quantidade de átomos em uma esfera perfeita de silício, também será usada para redefinir o mol.

Definir as constantes da natureza

Quando Phillips chegou ao NIST, há cerca de 40 anos, seu trabalho se concentrava na medição precisa do ampere, a unidade de corrente elétrica, para a qual se usava um dispositivo chamado balança de corrente. Esta evoluiu para o que hoje é conhecido como balança de Watt, um instrumento que equaciona a potência eletromagnética (que depende de uma corrente) com a potência mecânica (que depende de uma força, o peso). Primeiro, uma corrente conhecida é aplicada. Calculado o peso correspondente na balança, é possível obter a massa exata —um quilo—, uma vez que a aceleração da gravidade é conhecida. "Percebemos que esse experimento poderia medir a constante de Planck", lembra Phillips. A partir daí, redefinir o quilo era um passo lógico, já que a constante de Planck é medida em uma combinação de unidades que inclui a de massa. "Não estabelecemos que se tenha que usar a balança de Watt ou a esfera de silício para medir o quilo. Apenas definimos o valor da constante de Planck [e do número de Avogadro]", explica Phillips. "No futuro, melhores métodos poderiam ser desenvolvidos para que sejamos levados do valor da constante para o valor do quilo. Isso é lindo, na minha opinião; é como as coisas devem ser feitas", acrescenta.

No futuro, melhores métodos poderiam ser desenvolvidos para que sejamos levados do valor da constante para o valor do quilo. Isso é lindo

Seguindo o mesmo raciocínio, os metrólogos desenvolveram métodos para fixar a constante de Boltzmann, que definirá o kelvin, e a constante de carga elementar, que dará a definição do ampere. As outras unidades básicas —o segundo, o metro e a candela— já estão definidas por constantes físicas. Em novembro deste ano, a Conferência Geral de Pesos e Medidas será realizada em Versalhes para votar as mudanças propostas para o Sistema Internacional. Depois de todo o trabalho, Phillips confessa que espera que seja "apenas uma formalidade".

Bruno Martín participa do projeto europeu Elusives, que aborda o estudo de neutrinos, matéria escura e física além do modelo padrão. (H2020-MSCA-ITN-2015//674896-Elusives).

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